quarta-feira, 28 de maio de 2025

#VcNoBlog Ane Almeida e o novo Santuário do Morro da Conceição

 

Nove meses depois: A reconstrução da igreja e da comunidade do Morro da Conceição

Ane Almeida

Há nove meses, um estrondo sacudiu as paredes da minha casa e o chão e a vida do nosso Morro. Eu estava no quarto quando ouvi aquele barulho que fez tremer toda a comunidade.

Ao abrir a porta, vi vizinhos, amigos e familiares correndo. O teto da igreja havia desabado. Que desespero! Imediatamente, mobilizamos-nos. Gritávamos, ligávamos para os bombeiros, para a polícia. Era uma mistura de sentimentos: medo, angústia, coragem, mas o  Morro se juntava! Gente correndo, chorando, tentando ajudar — porque aqui, no Morro, somos todos de todos. Ana é de José, Paulo é de Maria, e todos pertencem a essa grande família chamada comunidade, à qual tenho o maior orgulho do mundo de pertencer. Sou Ane, filha do MORRO.

O sofrimento era por todos, independentemente de ter parentes de sangue ou não envolvido no ocorrido. Enquanto uns gritavam tentando localizar os soterrados, outros corriam atrás de gaze e soro. Alguns arriscavam a vida em meio aos escombros para resgatar os feridos. Outros cuidavam dos machucados até que o SAMU, a polícia e os bombeiros chegassem. Quando eles chegaram, já havíamos retirado todos os feridos, que estavam aos pés da santa ou na lateral da igreja, sendo atendidos por moradores, pelo pessoal do posto de saúde e por amigos que chegavam para ajudar. Eu, que tinha “medo de sangue”, perdi o medo na hora! Só queria ajudar, minimizar a dor das pessoas que estavam ali, sofrendo de dor, de desespero, pedia a Nossa Senhora que nos ajudasse. Era correndo de um lado para o outro, mas rezando em silêncio e em meio aos abraços de quem chegava.

Como sempre fizemos em momentos difíceis, abrimos nossa garagem para acolher quem chegava em busca de notícias ou abrigo. Gente ligando, gente chegando, gente do Morro se apoiando. Eram muitos feridos e milhares com o coração em pedaços, solidários à dor das vítimas e à perda do templo que ruiu.

Nos revezávamos entre cuidar dos feridos e consolar os parentes em desespero. Mainha ficou sentadinha na frente de casa, acalmando quem passava. “Professora, minha mãe morreu”, dizia, em prantos, o filho de uma das vítimas, abraçado a ela. Uma cena que marcou. Após o abraço, ele foi tentar entender e resolver as questões do velório.

Nas semanas seguintes, a vida mudou. Em meio ao silêncio ensurdecedor da comunidade, tínhamos o movimento das máquinas para retirar os entulhos e os olhares atentos ao que que havia restado para entender do prédio da igreja para entender o que tinha acontecido.

Enquanto isso, visitávamos os vizinhos, buscávamos ajuda no posto de saúde, levávamos médicos, remédios, perguntávamos por cada um: “Como está Maria? E Zumira? José? João? Marcos? Adriano?”. Era a gente cuidando da gente — como sempre foi aqui.

Alguns sofreram muito para se recuperar. Outros seguiram firmes, mesmo machucados. Mas e os que foram feridos psicologicamente? Esses são muitos e sentem até hoje. O que fazer? Nos ajudarmos entre a gente; mobilizar atendimento psicológico com o apoio do CERVAC. Vai atrás de um, atrás de outro. Voltar à igreja será um grande desafio. Olhar para o teto, se perguntar se está seguro, conviver com o medo e a dúvida — tudo isso ainda habita na mente de muitos. Mas o amor e a dedicação ao Santuário de Maria são maiores. Será um medo que iremos superar juntos.

Tiro o chapéu aos voluntários da igreja que não deixaram a peteca cair. Estavam firmes, junto com os padres, seja embaixo da tenda na praça ou na pequena estrutura montada aos pés da imagem. Foram guerreiros. Os movimentos e pastorais seguiram firmes na fé e no servir.

Até que a reconstrução da estrutura física da igreja foi concluída. Da minha janela, ouvi durante meses a batida dos martelos, das máquinas, as conversas dos trabalhadores. A cada barulho estranho, corria para ver se algo havia desabado de novo. Foram nove meses até que a "igreja de pedra" fosse erguida outra vez. Está linda. Um espaço que, mais uma vez, transmite paz e acolhimento. Digna de um santuário em homenagem à mãe de Jesus.

Em meio a tudo isso, nunca perdemos a fé. Sentíamos o manto de Maria cobrindo o nosso Morro, as nossas casas e famílias a todo momento. Quando o Papa Francisco rezou por nossa comunidade, sentimos o acalento que só quem é do Morro entende. A gente mora num lugar abençoado por Deus! Como é bom ser do Morro, que é um lugar que sempre nasce e renasce da força do Espírito Santo no meio do povo.

Mas agora chegou a hora de reconstruir outra coisa: a igreja viva — o povo. É hora de superar o trauma e fortalecer a comunidade, seguir de mãos dadas com quem faz do Morro um lugar abençoado por Maria. Somos uma comunidade feita de trabalhadores e famílias que lutam por um lugar mais justo para todos.

O Morro de luta e de fé foi erguido com base na organização da comunidade, tendo a igreja como espaço central de diálogo e união. Foi nela que nosso povo se reuniu para cobrar melhorias, planejar ações e conquistar direitos. Graças a essa força coletiva, hoje temos escola, posto de saúde, barreiras, transporte, água encanada, coleta de lixo e tantos outros serviços. Nada foi dado — tudo veio com muito esforço, fruto da luta incansável de uma comunidade que nunca se calou diante das dificuldades.

É por isso que agora, diante de mais um recomeço, é urgente que os poderes públicos — estadual e municipal — voltem também seus olhos para a reconstrução da vida no Morro, com foco em seu povo. O Morro é feito de um povo batalhador, forte e aguerrido, que precisa também ser cuidado. Que a nova fase comece com oportunidades concretas para nossa gente: trabalho, qualificação profissional, ação com os jovens, cuidado com os idosos, segurança, educação, acesso à saúde com qualidade, à cultura e ao lazer dignos para todos. Porque a verdadeira força do Morro está na união de tudo que o faz ser o Morro de Maria: seu povo, a igreja, os devotos, a comunidade. É com eles que seguiremos em frente, junto com a proteção da Virgem Maria.

Ane Almeida é Jornalista e Moradora do Morro da Conceição