Nove meses depois: A reconstrução
da igreja e da comunidade do Morro da Conceição
Ane Almeida
Há nove meses, um estrondo
sacudiu as paredes da minha casa e o chão e a vida do nosso Morro. Eu estava no
quarto quando ouvi aquele barulho que fez tremer toda a comunidade.
Ao abrir a porta, vi vizinhos,
amigos e familiares correndo. O teto da igreja havia desabado. Que desespero! Imediatamente,
mobilizamos-nos. Gritávamos, ligávamos para os bombeiros, para a polícia. Era
uma mistura de sentimentos: medo, angústia, coragem, mas o Morro se juntava! Gente correndo, chorando,
tentando ajudar — porque aqui, no Morro, somos todos de todos. Ana é de José,
Paulo é de Maria, e todos pertencem a essa grande família chamada comunidade, à
qual tenho o maior orgulho do mundo de pertencer. Sou Ane, filha do MORRO.
O sofrimento era por todos, independentemente
de ter parentes de sangue ou não envolvido no ocorrido. Enquanto uns gritavam
tentando localizar os soterrados, outros corriam atrás de gaze e soro. Alguns
arriscavam a vida em meio aos escombros para resgatar os feridos. Outros
cuidavam dos machucados até que o SAMU, a polícia e os bombeiros chegassem.
Quando eles chegaram, já havíamos retirado todos os feridos, que estavam aos
pés da santa ou na lateral da igreja, sendo atendidos por moradores, pelo
pessoal do posto de saúde e por amigos que chegavam para ajudar. Eu, que tinha
“medo de sangue”, perdi o medo na hora! Só queria ajudar, minimizar a dor das
pessoas que estavam ali, sofrendo de dor, de desespero, pedia a Nossa Senhora
que nos ajudasse. Era correndo de um lado para o outro, mas rezando em silêncio
e em meio aos abraços de quem chegava.
Como sempre fizemos em momentos
difíceis, abrimos nossa garagem para acolher quem chegava em busca de notícias
ou abrigo. Gente ligando, gente chegando, gente do Morro se apoiando. Eram
muitos feridos e milhares com o coração em pedaços, solidários à dor das
vítimas e à perda do templo que ruiu.
Nos revezávamos entre cuidar dos
feridos e consolar os parentes em desespero. Mainha ficou sentadinha na frente
de casa, acalmando quem passava. “Professora, minha mãe morreu”, dizia, em
prantos, o filho de uma das vítimas, abraçado a ela. Uma cena que marcou. Após
o abraço, ele foi tentar entender e resolver as questões do velório.
Nas semanas seguintes, a vida
mudou. Em meio ao silêncio ensurdecedor da comunidade, tínhamos o movimento das
máquinas para retirar os entulhos e os olhares atentos ao que que havia restado
para entender do prédio da igreja para entender o que tinha acontecido.
Enquanto isso, visitávamos os
vizinhos, buscávamos ajuda no posto de saúde, levávamos médicos, remédios,
perguntávamos por cada um: “Como está Maria? E Zumira? José? João? Marcos?
Adriano?”. Era a gente cuidando da gente — como sempre foi aqui.
Alguns sofreram muito para se
recuperar. Outros seguiram firmes, mesmo machucados. Mas e os que foram feridos
psicologicamente? Esses são muitos e sentem até hoje. O que fazer? Nos
ajudarmos entre a gente; mobilizar atendimento psicológico com o apoio do
CERVAC. Vai atrás de um, atrás de outro. Voltar à igreja será um grande
desafio. Olhar para o teto, se perguntar se está seguro, conviver com o medo e
a dúvida — tudo isso ainda habita na mente de muitos. Mas o amor e a dedicação
ao Santuário de Maria são maiores. Será um medo que iremos superar juntos.
Tiro o chapéu aos voluntários da
igreja que não deixaram a peteca cair. Estavam firmes, junto com os padres, seja
embaixo da tenda na praça ou na pequena estrutura montada aos pés da imagem.
Foram guerreiros. Os movimentos e pastorais seguiram firmes na fé e no servir.
Até que a reconstrução da
estrutura física da igreja foi concluída. Da minha janela, ouvi durante meses a
batida dos martelos, das máquinas, as conversas dos trabalhadores. A cada
barulho estranho, corria para ver se algo havia desabado de novo. Foram nove
meses até que a "igreja de pedra" fosse erguida outra vez. Está
linda. Um espaço que, mais uma vez, transmite paz e acolhimento. Digna de um
santuário em homenagem à mãe de Jesus.
Em meio a tudo isso, nunca
perdemos a fé. Sentíamos o manto de Maria cobrindo o nosso Morro, as nossas
casas e famílias a todo momento. Quando o Papa Francisco rezou por nossa
comunidade, sentimos o acalento que só quem é do Morro entende. A gente mora num
lugar abençoado por Deus! Como é bom ser do Morro, que é um lugar que sempre
nasce e renasce da força do Espírito Santo no meio do povo.
Mas agora chegou a hora de
reconstruir outra coisa: a igreja viva — o povo. É hora de superar o trauma e fortalecer
a comunidade, seguir de mãos dadas com quem faz do Morro um lugar abençoado por
Maria. Somos uma comunidade feita de trabalhadores e famílias que lutam por um
lugar mais justo para todos.
O Morro de luta e de fé foi
erguido com base na organização da comunidade, tendo a igreja como espaço
central de diálogo e união. Foi nela que nosso povo se reuniu para cobrar
melhorias, planejar ações e conquistar direitos. Graças a essa força coletiva,
hoje temos escola, posto de saúde, barreiras, transporte, água encanada, coleta
de lixo e tantos outros serviços. Nada foi dado — tudo veio com muito esforço,
fruto da luta incansável de uma comunidade que nunca se calou diante das
dificuldades.
É por isso que agora, diante de
mais um recomeço, é urgente que os poderes públicos — estadual e municipal —
voltem também seus olhos para a reconstrução da vida no Morro, com foco em seu
povo. O Morro é feito de um povo batalhador, forte e aguerrido, que precisa
também ser cuidado. Que a nova fase comece com oportunidades concretas para
nossa gente: trabalho, qualificação profissional, ação com os jovens, cuidado
com os idosos, segurança, educação, acesso à saúde com qualidade, à cultura e
ao lazer dignos para todos. Porque a verdadeira força do Morro está na união de
tudo que o faz ser o Morro de Maria: seu povo, a igreja, os devotos, a
comunidade. É com eles que seguiremos em frente, junto com a proteção da Virgem
Maria.
Ane Almeida é Jornalista e Moradora do Morro da Conceição