domingo, 5 de março de 2023

Tiago Saturno: "Eu estou do lado da piada"

 

Um rapaz com nome de planeta  - e que não é artístico - e muita vontade de fazer as pessoas rirem. Esse é Tiago Saturno, um dos maiores nomes da nova geração de comediantes da cena pernambucana do Stand Up Comedy. Fã de Jeison "Cinderela" Wallace, Saturno tem como referência maior o também stand upper pernambucano Rodrigo Marques. Quando fui mandar as perguntas para entrevistá-lo ele me mandou um áudio, pasmem, de 15 minutos! "Esse foi o maior áudio de zap´que já gravei em toda a minha vida". Para ele, o limite do humor está na seara do crime e seus melhores momentos na carreira foram exatamente quando seus familiares estavam presentes e ele também pode ser ouvido no podcast "Me desculpa pelo áudio 😔 Vamos ver agora a entrevista do maior áudio já gravado por ele.

1) Pra você, humor tem limites? Por que?
Oh não é só o humor que tem limite tá? Tudo na vida tem limite tudo agora se você me perguntar qual é o limite do humor eu vou ser bem claro e específico o limite do humor é o crime. Tá? A partir do momento que você sobe no palco e comete um crime não é mais humor. Então o limite do humor é quando ele deixa de ser comédia pra ele ser um crime, pra ele ser uma ação perigosa, pra ele ser uma ação inescrupulosa, antiética e qualquer tipo de coisa que se assimile isso se for apenas humor é humor acabou, ah mas essa piada é muito pesada mas ela comete algum crime? ela aciona alguma lei se não é humor entendeu? Então eu sou aquele cara que tipo pô Léo Lins faz comédia ácida há mais de 10 anos ele é o cara que é mais conhecido por isso, o Diih Lopes faz comédia ácida há muito tempo. Então pra mim o humor o único limite do humor é o crime. É isso.

2) O humorista stand upper escreve os próprios textos. De onde vem a inspiração?
De onde vem minha inspiração? Da minha vida, da minha vida. Antes eu escrevia muita coisa sobre a minha vida, só que de uma perspectiva em terceira pessoa, como se fosse alguém avaliando minha própria vida. Hoje não. O humor brasileiro, né, stand-up brasileiro ele é muito de identificação. Muitos comediantes são conhecidos por isso. Então eu aprendi a conhecer os relatos da minha vida e os fatos mais engraçados e às vezes dá uma exagerada aqui, uma exagerada ali pra poder fazer meus textos Minha inspiração vem justamente das coisas que eu vivo. Hoje eu diria que 90% do meu texto é de tudo que eu já vivenciei. Eu tenho mais ou menos 40 minutos de texto que eu já testei, que eu já pus em prática e desses 40 fácil, 35 minutos são de coisas que eu já vivi, que realmente aconteceram, tá? Então minha inspiração vem da minha vida. Tá? Minha observação sobre quão engraçada pode ser a minha vida.

3) Qual o melhor e o pior momento que você passou no palco?
Olha, o melhor momento no palco é difícil dizer porque eu acho que eu seria injusto. Mas a melhor sensação que eu tive no palco até hoje foi quando eu tive a oportunidade de abrir o show de Rodrigo Marques e meu pai estava na plateia. Foi o primeiro show que o meu pai viu e quando eu fiz uma piada que a turma aplaudiu, meu pai foi junto. Aquilo pra mim foi incrível sabe? Foi incrível! E outro grande momento que eu tive na minha vida foi quando minha mãe e minha tia estavam na plateia e eu estava fazendo uma apresentação na minha cidade e elas riram muito do meu texto. Então assim, foram momentos muito bons, entendeu? Foram momentos memoráveis. 

Todos os momentos em que eu estava com minha família, minha esposa, meus filhos e eu subi ao palco fiz os fiz o show foram muito bons. Então eu aguardo sempre esses melhores momentos que eu tive. Agora o do meu pai foi realmente marcante pra mim porque eu nunca esperei que meu pai fosse pra um show meu sabe? E ele ter ido foi bastante importante. E o pior momento que eu passei no palco eu acho que eu não tive assim um momento ruim. Mas eu já tive dias bem difíceis de stand up e um deles foi quando eu estava no antigo loft ainda e lá eu tive uma das piores apresentações que eu pude ter porque eu estava muito nervoso ninguém ria e não era um problema só comigo foi com todo mundo. Então foi um momento bem tenso pra mim. Eu acho que esse foi um dos piores momentos que eu passei no palco sim

4) O que te levou a querer fazer comédia?
O que me levou a fazer comédia? Eu nunca quis fazer comédia, mas eu sempre fui um cara que gostava de reter a atenção dos outros Então eu sempre gostava de estar no centro das conversas, eu sempre gostava de eh saber qualquer assunto que estava sendo falado. Eu sempre gostava de debater ideias, eu gostava de brigar, eu era muito de conflito. E então isso me dava muita vontade de interagir, sabe? Até que um dia um amigo meu que fazia stand up, era o Karl Heinz e ele me chamou até a casa dele e disse, oh, eu estava muito mal nesse dia, estava tinha acabado de sair de um relacionamento, estava bem mal. Sou um cara emocional, sou desses E aí ele me chamou pra ajudar ele com os textos, com as piadas. Porque eu estava escrevendo algumas coisas que soavam, engraçadas no meu Facebook. 

E aí eu fui pra lá, a gente trocou ideia, fez textos tal até que ele disse assim mano por que que você não usa isso aqui pra você? Não me vejo no palco fazendo isso e tal e aí ele chegou pra mim e disse faz escreve cinco minutos e manda pra alguém eu conheço uma galera que pode te botar no palco aí eu já tava nessa coisa de ir pra show, sabe? De acompanhar. Eu tinha ido pra um show do Karl com Rodrigo Marques, Kedny Silva e Alisson Vilela na Paraíba, foi o meu primeiro show de stand-up, foi o primeiro contato com eles e depois eu fui prum show aqui e aí eu conheci o Marcílio Rodrigues, ele leu o meu texto e disse, tu faz no próximo dia, tá? Não sei o que, me chamou, eu fui e fiz e aí bateu a paixão à primeira vista, subi no palco. As pessoas ouviram a minha história, riram com os meus relatos e foi muito legal. Muito legal mesmo. Então o que me levou a querer fazer comédia foi fazer a comédia Foi o primeiro momento que eu fiz comédia, eu disse, eu quero fazer isso. Sabe?

 

  5) Quem são suas maiores referências?
Quem são as minhas maiores referências? Eu já falei isso, eu tenho muita referência, eu tenho muita referência. Minha cabeça ela é um baú de informações inúteis. Eu gosto muito do Costinha, eu gosto muito do Renato Aragão, eu gosto muito do Mussum nossa, eu sou fã do Mussum. Gosto muito do Zacarias, eu gosto do Adamastor Pitaco, desses caras que sempre foram muito gigantes, sabe? E eles faziam humor mais teatral, mais caricato, alguma coisa do tipo. Ah eu gosto eu sou apaixonado por Jason Wallace, ele é incrível. Foi o meu primeiro contato com comédia na vida assim comédia, não stand-up mas comédia foi uma fita do Jason Wallace e eu gostei de cara, a Trupe do Barulho era maravilhosa. 

Depois que eu vivenciei o mundo do stand up eu pude acompanhar o crescimento de uma pessoa que eu via lutando pela arte que ele era apaixonado por aquilo que ele era profissional com aquilo que ele fazia e estava querendo fazer tudo tal e hoje em dia pra mim ele é o melhor escritor de comédia do Brasil que é Rodrigo Marques. Então dentro do stand up hoje uma das cabeças que eu mais tento me inspirar é ele mas tem outros amigos também daqui de Recife que não ficam atrás que são Kedny Silva, Bruno Romano, Flávio Andrade, o Alisson Villela que já nos deixou, mas eu me inspiro muito nele principalmente quando eu estou escrevendo algum texto e penso: “será que eu vou atingir alguém de forma que vai ao invés de gerar um riso gerar tristeza?” Eu penso muito no que eu vi lá ela me falava porque ele tinha muito essa cabeça sabe? 

Então minhas referências são sempre quem estavam muito próximos de mim e com quem convivo. E uma referência que eu vou falar agora que parece besta mas que é incrível é o cara que fazia o sargento Pincel ele era maravilhoso. Era maravilhoso. Eu achava ele incrível. Tá? E é isso. Ah mas e Chico Anísio, Nairon? Tipo gostei muito. O Chico era maravilhoso, mas eles não eram referências porque eu sempre me achei tipo, eu nunca vou conseguir chegar no que esses caras são, sabe? E não que eu chegue e não as minhas outras referências são mais próximas de algumas e outras eu sempre admirei muito sabe? Então é uma questão do tipo eu uso referência as pessoas que eu gosto então são essas.

@saturnotiago nem toda saída de emergência é legal! #humor #comedia #standup #fy ♬ som original - Tiago Saturno
6) Você acredita que existe um patrulhamento, um politicamente correto?

Se eu acredito que existe um patrulhamento de um politicamente correto. Ah difícil isso porque eu posso me incluir no patrulhamento do politicamente correto mas eu posso me incluir na galera que luta pela liberdade de expressão então assim fica muito complicado falar sobre isso de forma definitiva tá? Acho que existe sim uma galera que é mais preocupada em criminalizar a piada, a galera que é chata pra cacete, a galera da militância mesmo, aquela galera que vai pra cima e tal, existe uma galera que não gosta de certo estilo de comédia que vai criticar sempre o tipo de comédia que não gosta. Tipo eu não gosto de stand up o que esses caras fazem ridículo tal tudo mais, não gosto de certos tipos de comédia que vão criticar sempre o tipo de comédia que não gosta. 

Tipo eu não gosto de em pé o que esses caras fazem ficar ridículo tal e tudo mais blá blá blá essa galera também está aí no meio. E tem também a galera que não tem opinião pra isso. Está ali só pra se divertir como também do outro lado tem a galera que quer pesar a mão não sabe pesar a mão e acaba cometendo o crime entendido? Acabando quebrando barreiras então eu acho que os dois lados são muito perigosos tanto o que é militante quanto quem pede liberdade. Acho que quem anda nessa linha tênue entre um e outro é o cara mais sábio sabe? Eu não sei de que lado eu estou sinceramente. Eu estou do lado da piada.

Se o cara está sendo profissional, se o cara sabe que eu estou do lado da piada. Então é isso. É mais ou menos isso. Eu não sei ainda onde eu me encontro nessa turma. Porque existe um patrulhamento, existem pessoas que perdem o tempo da vida delas patrulhando sim, tá? Como também existem pessoas que perdem o tempo da vida delas combatendo aqueles que patrulham. Patrulha antipatrulha, sabe? É isso.

@saturnotiago e essa vida de atendente de telemarketing? #standup #standupcomedy #telemarketing #humor ♬ som original - Tiago Saturno
7) "Saturno" é nome artístico? Se sim, como surgiu e você já foi zoado por isso?
Saturno não é um nome artístico tá? Saturno é meu nome de família nome que veio do meu avô meu avô era Adalberto Saturno passou pra todos os filhos homens na família por exemplo meu pai é Valmir Saturno tem meu tio que é Valdir Saturno tem Cledimilson Saturno enfim e as mulheres da família todas elas carregaram o Ângela que aí era Janeide Ângela, Cleidiane, Ângela, Geane Ângela, esse tipo de coisa. Então, as mulheres ficaram com Ângela e os homens ficaram com o Saturno. Por que? Não sei. Não me pergunte essa história, tem que perguntar à galera que é dessa geração aí pra saber direitinho, tá? Mas é isso, Saturno é nome de família. E se eu já fui zoado por isso, AAAAhhh! Sempre! Sempre! Sempre! Sempre! Sempre! Sempre tem uma gracinha! Alguém te ouve! Assim, eu não costumava me apresentar como Tiago Saturno. Eu me apresentava sempre como Tiago ou como Luiz quando eu queria que fosse algo diferente. Mas eu sempre me apresentei com o Tiago e não me apresentou como Saturno. Eu gosto peguei pelo meu nome mesmo depois de eu subir no palco e decidir que eu ia me chamar Tiago Saturno. Como é que você quer ser chamado e tal e tudo mais. Eu disse Tiago Saturno. É isso. Acho que pega mais. É um nome mais que fixa na cabeça das pessoas e normalmente fixa. Porque a galera sempre pensa na piadinha hoje no meio do stand-up eu sou conhecido como Saturno e sabe uma coisa que me emociona porque eu estou levando o nome da minha família entendeu? É um um bagulho bem legal então essa turma não é nome artístico foi escolha.

@saturnotiago eu amo PIADOCAS! #standup #comedy #humor #comedia ♬ som original - Tiago Saturno
8) Aproveita o espaço pra anunciar contatos, shows, etc
Os meus contatos são no Instagram, todas as redes sociais arroba Saturno Tiago. O Twitter eu uso pra falar besteira, eu uso pra piada, pra fazer filosofia, pra jogar ideia louca, pra anotar alguma premissa, esse tipo de coisa, o Instagram eu uso muito pra publicar foto de show, reels, essas coisas. YouTube, eu não tenho costume de usar como eu não sou um comediante famoso eu guardo mais material pra não queimar tanto material assim e nas outras plataformas estou no no Spotify Deezer e Amazon Music com o podcast que se chama Me Desculpe Pelo Áudio que é uma brincadeira com o fato de muitas pessoas não se agradarem comigo mandando áudios nos grupos. O grupo dos amigos da escola, tem gente que reclama, grupo dos comediantes, tem gente que reclama.

Eu uso muito áudio porque eu fui Uber na minha vida durante muito tempo. Ainda sou e por estar sempre dirigindo era difícil dirigir e digitar ao mesmo tempo. Era mais fácil pegar lá o tracinho do microfone jogar pra cima. Então sempre estava mandando áudio tinha seta do carro porque sempre estava manobrando. Não sei o porquê, não me pergunte isso. Mas eu sempre estava manobrando, então sempre tinha seta, um alerta, alguma coisa do tipo ou quando eu parava pra poder fazer esse tipo de manobra. E é isso. Eu estou lá nas redes sociais Pode procurar lá como Saturno e Tiago. Então é isso. Mostra sempre no Manguetown. Maioria das vezes que você vai me ver nas terças-feiras testando no texto lá no Fábrica de Piadas e também algumas aparições que eu faço em outros shows. Eh estou pensando se eu sigo essa coisa de fazer solo tal e tudo, mas não me acho pronto ainda pra isso mas estou pensando nisso e é isso.

Entrevista: Vania Coelho, uma voz que fala sobre o silenciamento de mulheres

 

Há seis anos, 08 de março de 2017 o Blog Taís Paranhos, no Dia da Mulher, fez uma série de textos sobre mulheres que foram silenciadas, ou seja, quase todas as relatadas foram assassinadas. E ao longo da história, muitas foram silenciadas, algumas para sempre. A escritora, professora universitária e jornalista Vania Coelho fez de sua obra uma voz contra esse silenciamento. Em 2021, lançou seu livro A Incrível Lenda da Inferioridade, Volume 1, como uma forma de expressão e denúncia. "Fiquei meses tentando gritar. Precisava denunciar todo o caos que ocorria diariamente. Mas como? A denúncia surgiu com a pesquisa e a leitura do silenciamento feminino ao longo dos tempos. Assim nasceu A Incrível Lenda da Inferioridade, volume I, em 2021, no auge da pandemia, editado pela Chiado, de Lisboa".

Agora, em 2023, está divulgando o segundo volume, onde cita outros nomes que tentaram silenciar, o que a deixa pessimista diante das perspectivas atuais. "Não vejo um futuro livre de violência na vida da mulher. O retrocesso da extrema direita no mundo dificulta a criação de políticas públicas e leis que possam salvaguardá-las. No volume II de A Incrível Lenda da Inferioridade falo sobre Malala e muitas outras mulheres que lutaram e lutam por igualdade e paz. Hoje, eu luto para que um dia a mulher seja respeitada e que ela possa viver em paz (do jeito que desejar) sem ser chamada de vagabunda ou inadequada".


Em entrevista ao Blog, Vânia Coelho nos conta de que forma a humanidade sempre silenciou mulheres que, querendo ou não, ousaram enfrentar o patriarcado de variadas formas e de como foram caladas - algumas para sempre - desde antigas narrativas. Um exemplo é o da personagem Lilith, que - de acordo com antigas narrativas hebraicas - era uma mulher feita de barro como Adão e que queria ter os privilégios patriarcais. Na narrativa ela é substituída por Eva, vinda da costela do homem e silenciamento é de tal forma que sua história não é parte da Bíblia e muita gente não sabem nem quem é a personagem.
Vamos ler a conversa com a Escritora, Professora e Jornalista?

1) Como surgiu a ideia de escrever "A Incrível Lenda da Inferioridade"?
Sou feminista e sempre militei pelos direitos das mulheres. Luto pela liberdade feminina. Há, ainda hoje, muita violência (psicológica, emocional e física) sobre a mulher (no Brasil e o mundo). Milito por meio de palestras e pela literatura, meus gritos mais guturais vêm da literatura, portanto, de meus livros. Por volta de 2016, quando a ex-presidente Dilma Rousseff sofreu impeachment, uma nuvem estranha e dolorida tomou conta da sociedade brasileira. Desde a posse de Michel Temer, o Brasil foi invadido por demônios de toda ordem e um retrocesso imenso passou a fazer parte do país. A violência contra a mulher aumentou e a banalização dessa mesma violência incomodou-me sem precedentes. Fiquei meses tentando gritar. Precisava denunciar todo o caos que ocorria diariamente. Mas como? A denúncia surgiu com a pesquisa e a leitura do silenciamento feminino ao longo dos tempos. Assim nasceu A Incrível Lenda da Inferioridade, volume I, em 2021, no auge da pandemia, editado pela Chiado, de Lisboa. Confinada no alto de uma montanha mineira, a 1700m de altitude, nos anos de 2018 e 2019, no silêncio da Serra da Mantiqueira, dei início à escrita contando a história real de 33 mulheres que sofreram opressão pelo patriarcado.

2) Você tem uma trajetória como jornalista, escritora e professora. Como você, dentro de sua vida profissional, identificou essas "inferioridades"?
Sou jornalista e lecionei no curso de Jornalismo por longos anos, era orientadora de TCCs. No curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo, o trabalho de conclusão de curso é um livro-reportagem. Minha trajetória jornalística deu-se nas universidades. Eu li praticamente todos os clássicos do jornalismo no que tange à grande reportagem impressa. A literatura, assim como o jornalismo (guardadas as proporções), também ensina, informa, critica e denuncia. A partir disso, decidi caminhar pela literatura para denunciar as atrocidades que as sociedades do mundo todo, incluindo as do Brasil, praticavam contra as mulheres. Iniciei as pesquisas jornalísticas e adequei os resultados ao New Journalism. Identificar as inferioridades que as sociedades impõem desde Adão até hoje sobre as costas das mulheres é fácil, é só apreender a realidade. Da mulher é cobrado, além de ser ótima esposa, filha obediente e mãe dedicada, que siga os padrões de beleza e juventude que o patriarcado escolheu. Mulher idosa é descartada, não tem utilidade nas sociedades. A velhice feminina é social. Outra identificação vem da própria experiência como filha de militar e advogado, esposa de um homem que veio de uma família tradicional e conservadora, uma família descendente de italianos que acreditava que, além de serem superiores, neles residiam a verdade absoluta. Nessa história particular (minha), casei-me com a família inteira do cônjuge, é complicadíssimo ter que se explicar (e obedecer) constantemente aos membros desse clã fechado e reacionário.


3) No seu ponto de vista, por que o patriarcado insiste em silenciar mulheres que se empoderam e se destacam na sociedade?
O patriarcado insiste em silenciar mulheres para que possa manipulá-las. Oprimem, castigam e silenciam (se for preciso) para manter a dicotomia Família & Propriedade; para ter a certeza de que, exigindo a virgindade, os filhos serão legítimos; para ter a liberdade de, tendo a mulher para procriar e cuidar da casa e da prole, poderão os homens irem e virem e estarem onde (e com quem) desejarem. Tão simples e fácil é ter uma esposa (empregada) em casa. O patriarcado criou um “kit” completo: ao se casar, o homem ganha (durante o dia) a faxineira, a cozinheira, a arrumadeira, a organizadora e, à noite, a escrava sexual. Como foi exigido por longos séculos a virgindade feminina, as mulheres casam-se sem experiência alguma. E isso é péssimo (também proposital), porque a liberdade sexual é a extensão de outras liberdades que a história negou à mulher. Não à toa, Freud estudou e deixou claro que a repressão sexual trazia diversas neuroses ao longo da vida. Em A Função do Orgasmo, Reich é contra a repressão sexual, segundo ele, a proibição dá-se em nível psíquico e físico, gerando doenças e dores crônicas.

Se os homens são os que fazem as leis, as traições masculinas são apropriadas, e as femininas, condenadas. Eu ficaria escrevendo aqui até amanhã enumerando centenas de razões para o patriarcado ser um paradigma que, ainda hoje, rege sociedades e países. A religião é outro entrave fabricado pelos homens. Há muitas questões que desenvolvo no volume II de A Incrível Lenda da Inferioridade. Cito, por exemplo, as práticas hediondas do Sati, do Cinto de Castidade, do Chauppadi, do Breast Ironing, das exigências do sangramento na noite de casamento, da maternidade, do primeiro e segundo e terceiro filho serem homens, da proibição constante às escadas do conhecimento, e por ai vai. São necessárias leis rigorosas, e políticas públicas que auxiliem as mulheres que sofrem violência, mantendo seus algozes na cadeia.

4) Você pesquisou mulheres ao longo da História, da idade antiga à atualidade. Ainda hoje você enxerga o silenciamento das mulheres?
Hoje, o silenciamento está escancarado. Desde o assassinato de Ângela Diniz por Doca Street (e tantas outras mulheres) e a palhaçada misógina do seu primeiro julgamento, condenando a ré e não o assassino, é prova incontestável de que a violência não cessa e de que aos homens é permitido matar pela honra ou por uma decisão qualquer. O goleiro Bruno assassinou Eliza Samudio, e a maioria o venera. Onde estamos? O ex-lutador Paulo Lima dos Santos matou a esposa, jogou o corpo dela em um riozinho, e depois, foi almoçar com a sogra. Em que mundo vivemos? São milhares de histórias de ódio e morte. Conheço uma infinidade de casais, cujas mulheres andam pisando em ovos de medo da violência. A bibliografia que denuncia os atos misóginos é imensa. Ano passado, várias pesquisadoras entrevistaram mulheres em abrigos secretos, dessa reportagem nasceu o livro Enquanto não cicatriza.

5) E você? Chegou a vivenciar ou testemunhar de perto algum caso de silenciamento às mulheres?
Desde muito pequena eu sentia uma revolta ao ver o quanto minhas tias eram infelizes, e o quanto seus maridos reclamavam delas sem cessar. Testemunhei várias agressões. Meu pai nunca bateu em minha mãe, mas gritava, humilhava, quebrava coisas, ameaçava, era muito difícil. Cresci jurando para mim mesma que nunca passaria por situações como aquela e que lutaria contra a violência gratuita que as mulheres sofriam e sofrem. Minha avó materna casou-se aos quinze anos sem conhecer o marido que escolheram para ela. Só o viu antes da cerimônia. Não vou citar nomes, mas um tio batia na irmã de minha mãe, presenciei muitas vezes. São atos de grande covardia masculina. A maioria de minhas descobertas vem da história e da literatura. São resultados reais (e tristes) de minhas pesquisas. Minha mãe tinha um olhar triste. Minha avó materna tinha um olhar triste. Olhar o olhar de minha mãe me deixava revoltada.

6) Entre as personagens citadas estão Lilith e Eva. Enquanto Eva carrega a culpa do pecado, Lilith é silenciada a tal ponto que muitas pessoas religiosas, leitoras da Bíblia, sequer sabem quem ela é. A que fatores se deve esse silenciamento milenar da Lilith.
O silenciamento de Lilith tanto quanto o de Eva foram devido ao conhecimento que as duas se permitiram. Se é verdade que Eva levou Adão a pecar (aliás, pecado e culpa são dois conceitos inventados pela igreja e pelos homens representantes do poder) essa verdade, entre aspas, é alicerçada na incoerência, ela apenas observou e tentou conhecer a si mesma. Teve curiosidade e usou sua inteligência para desvendar ou experenciar algo. Eva foi castigada, porque ousou conhecer, ousou caminhar na estrada do saber. E foi condenada como pecadora. No entanto, aqui cabem mil outras questões que eu não daria conta de enumerar. Eva sabia que tinha libido. Adão foi criado para acreditar que sua libido (pecaminosa) era fruto de Eva. Isso traz muitos problemas, não é a mulher que desvia o homem do estado racional para o instintivo, como se faz crer leis e paradigmas, o homem tem libido independentemente de a mulher existir. E o que se diz do homem que se masturba apenas por prazer, sem fantasiar mulheres nuas? E o que se diz do homem que sente atração por outro homem? A mulher não desvirtuou o homem, apenas seguiu seu prazer. E foi condenada para nunca mais fazer isso. Lilith não aceitou sua origem e condição inferior, vir do barro ou das fezes, ter nascido de uma costela masculina. Lilith rejeitou tudo o que impuseram a ela, com isso passa a não servir como exemplo de mulher. Nessas histórias temos a inadequada e a pecadora. Aliás, cabe aqui um parêntese: a mulher não veio da costela de Adão, pelo contrário, foi o homem que veio do útero fértil da mulher. Do útero saiu pela vagina.

Essa ideia de que a mulher desvia o homem do racional, acende a libido dele, faz com que o estupro seja absolvido, e até consentido, porque as meninas estavam com saia curta, um short agarrado, estavam com batom e, talvez, um decote assim assado, E daí o homem violento e estuprador é inocentado, essa ideia é desde Eva e Lilith. É foda.

7) Que perspectivas você vê para o futuro de mulheres de destaque? Nomes como o de Greta Thunberg e o de Malala (que quase foi silenciada pelos talibans)? E no Brasil? Que nomes poderíamos citar?
Não vejo um futuro livre de violência na vida da mulher. O retrocesso da extrema direita no mundo dificulta a criação de políticas públicas e leis que possam salvaguardá-las. No volume II de A Incrível Lenda da Inferioridade falo sobre Malala e muitas outras mulheres que lutaram e lutam por igualdade e paz. Cito as feministas como Bertha Lutz e Clara Zetkin, as sufragistas, Marie Curie, Rosa Luxemburgo, Eidy da Silva, Yoko Ogawa, Nair de Teffé, Anna Amélia, Rachel de Queiroz, Clementina de Jesus, Chiquinha Gonzaga, Pagu e tantas outras. E, refletindo sobre a luta delas, sinto-me, muitas vezes, engatinhando. Parece que o movimento feminista caminha em círculos em lugar de ascender. Pagu, foi a segunda mulher presa política da história brasileira, a primeira foi Bárbara Alencar, e a terceira, Rachel de Queiroz. Sucessivamente, temos Djanira da Motta que também foi presa. Hoje, eu luto para que um dia a mulher seja respeitada e que ela possa viver em paz (do jeito que desejar) sem ser chamada de vagabunda ou inadequada.

8) Fale sobre sua trajetória de vida, como mulher, jornalista, escritora e professora.
Minha carreira jornalística deu-se dentro das academias. Nelas, exerci função de editora-chefe de jornais laboratoriais e diretora de programas televisivos. Lecionei disciplinas teóricas como história da comunicação e do jornalismo, trabalhei com prática de entrevista e orientei os TCCs, como citado. Participei de inúmeros eventos voltados ao jornalismo e dei inúmeras palestras. Foram mais de 30 anos lecionando. Nesse período escrevi oito livros: Costureira dos Malditos; Ritos Encantatórios; Aspectos Teóricos da Linguística; Tormenta; A mulher na Idade Média. In: História e Resistencia; Os Inocêncios; A Incrível Lenda da Inferioridade I e II. O volume II dessa última obra será lançado em abril desse ano pela Appris Editora.


Vânia Coelho*