Se você pudesse listar quais
ensinamentos dar aos seus filhos, quais escolheria?
Acredito que os melhores... Não é? Mas, muitas vezes, esses
“bons ensinamentos” surgem de situações difíceis que não estavam planejadas ou,
simplesmente, que você não escolheria ver seus filhos passando.
Fui uma “filha no câncer”. Aos 15 anos, assisti minha mãe
ser diagnosticada com câncer de mama. Sei que enfrentar essa doença e todas as
dores que ela provoca não é algo premeditado por uma mãe.
Até pouco tempo atrás, eu apenas imaginava a dor vivenciada
por minha mãe, aos 38 anos, com três filhos (16, 15 e 12 anos). Três filhos do
câncer.
Uma mãe sempre quer proteger seus filhos de todo e qualquer
mal. Não quer vê-los sofrer. Foi difícil demais ouvir o diagnóstico dela. E eu
só podia imaginar a dor dela ao contar de sua doença. Lembro (como se fosse
hoje) de meu irmão perguntando assim para ela: “Mãe, tu vai morrer?”. Ela,
cheia de força (que não compreendia de onde vinha), respondeu: “Não, meu filho.
Vou ficar curada para terminar de criar vocês”. Será que uma mãe tem noção do
que é ser filho do câncer? Da importância que esse capítulo tem no livro-vida
de um filho? Fui uma filha no câncer. Enquanto minhas amigas colecionavam fotos
e ouviam seus ídolos (Madonna, Guns n’Roses, Legião Urbana, etc.), eu ouvi o
choro de minha mãe... Era medo, tristeza, angústia, dor... Tudo isso naquele
choro. E eu chorei também. Não apenas uma vez. Chorei várias. Chorei em meu
quarto, na companhia de minha irmã, no escuro. De medo de perder a mãe. Choro
compartilhado por filhos do câncer.
Trinta e um anos depois, sou uma mãe com câncer. Aliás,
hoje, 20 de dezembro de 2020, não mais. Meus seios foram de mim tirados numa
longa cirurgia. Há dez dias, acordei da anestesia, ainda na sala de cirurgia,
agradecendo estar viva para voltar pra casa e, assim, terminar de criar minhas
filhas (11 e 9 anos). Minhas Anas. Esse foi meu maior desejo após o diagnóstico
do câncer de mama. Acredito que deva ser um sentimento comum em mulheres-mães
diagnosticadas com câncer. É a tendência natural: pensar nas crias. Alguns
médicos presentes ainda na sala de cirurgia naquela quarta-feira, após o
procedimento de pouco mais de 6h acabar me ouviram agradecer ao acordar. O
agradecimento pelo (RE)nascimento. Renasci e vou concluir a criação de minhas
filhas...
Ser mãe é assim. Não é? Pensar no filho e desejar o melhor
para ele: que seja feliz, que não sofra, que tenha saúde, etc e tal... Ser mãe
é tentar ofertar o melhor para o filho em todos os sentidos. Quantas abdicações
fazemos por eles, não é mesmo? Tudo pelo seu bem-estar físico e emocional.
Ao ser diagnosticada com câncer de mama pensei em seguida:
como vou contar para minhas filhas? Pedi que Deus me iluminasse no momento da
revelação. Fiquei temerosa em causar-lhes sofrimento. Compreendi a dor de minha
mãe, em 1989. Era outro século, mas a angústia de uma mãe não muda.
Escolhi ser verdadeira, relatando de maneira positiva (que
me é peculiar) o que estava acontecendo: “Os peitinhos de mamãe estão doentes e
os médicos precisarão tirá-los de mim”. Elas choraram. Eu chorei. Choramos
juntas. Foi uma noite de muita emoção. Ao optar por contar a verdade, a mãe com
câncer escolhe ensinar RESILIÊNCIA a seu(s) filho(s): “Mãe, você vai ficar boa
se retirar eles? Você vai voltar pra casa depois do hospital?”. Em 2020, eram
outros filhos do câncer, mas as dúvidas eram as mesmas. O medo de perder a mãe
também: “Sim, filha. Vou tirar e voltar pra casa curada para continuar criando
vocês”.
Poupar um filho da dor sempre será a opção de uma mãe.
Mas a escolha já havia sido feita. A verdade foi dita.
Aqueles filhos passariam por um (RE)nascimento. Alguns (RE)nascimentos são
prematuros. Mas todos são necessários. Proporcionar amadurecimento aos filhos é
algo que toda mãe deseja. Mas desejamos amadurecimento sem dor. Mas o que fazer
se é, justamente, na dor que a gente mais cresce?
No dia 09 de dezembro de 2020, saí de casa para a
mastectomia dizendo para não se preocuparem: “Mamãe volta amanhã e retomaremos
nossa rotina”. Ledo engano. Há coisas que não podemos prometer. No dia
posterior, não era a mesma mulher que retornava para casa. Eu havia renascido.
Uma nova mãe voltava ao lar. Não há como negar: é impossível continuar a mesma
após uma mastectomia. Não falo apenas das mudanças físicas e posturais do
corpo. Falo da mente. A mastectomia e o retorno ao lar me trouxeram também
novas filhas. Passaram a ser cuidadoras, enfermeiras, apoio... mas ainda
crianças.
O pós-operatório de uma mastectomia é doloroso. Algumas
dores cortam a alma. É preciso paciência. Com tudo. Principalmente com seu
corpo. Ele precisa de tempo para acomodar-se. Vinha me comportando bem. Nenhuma reclamação. Seguia sentindo
muitas dores, mas calada. Dez dias após a cirurgia, dei o primeiro tropeço:
chorei de dor na frente delas. Não é o que uma mãe sonha, mas aconteceu! A dor
era intensa e eu solucei. Em meio aos meus soluços percebi que não eram as
mesmas filhas “de antes do câncer”. Elas também estavam (RE)nascendo. Os
olhares daquelas crianças em meus olhos que teimavam garantir a exposição de um
dilúvio eram de outras filhas. Como um filme, que passa em rotação acelerada,
lembrei de meu maior aprendizado enquanto filha do câncer: resiliência.
Vocábulo novo na vida daquelas meninas, mas que explicava
bem todo o momento. Palavra que vem do latim “RESILIRE”, que significa “voltar
atrás”. Os filhos do câncer adquirem a capacidade de lidar com seus próprios
problemas, de sobreviver e superar momentos difíceis diante das situações
adversas.
Vários estudos científicos já revelaram que é necessário
vivenciar a desordem, o caos, para sobreviver e crescer. Eu achei que estivesse
roubando a infância delas e, erroneamente, vinha escolhendo poupá-las de me
verem chorar.
Hoje, uma grande amiga que me conheceu enquanto fui filha do
câncer me disse: “Suas filhas vão ver e sentir no seu exemplo que podem se
permitir dobrar ao vento sem que isso as quebre”. Isso aconteceu comigo. Eu
tinha 15 anos. Mas poderia ter menos. Ou pouco mais. Vivenciar a dor de ter uma
mãe com câncer. Ela não escolheu isso pra mim. A vida escolheu. E eu vivi.
Mãe é um ser que se sente culpado por natureza... Mas
escrevo agora para mães com câncer. Aquelas que tiveram o diagnóstico dessa
doença tão dura: Permitam aos seus filhos a oportunidade de crescerem
resilientes. A dor que eles vivenciarão, embora muitas vezes dilacerante, é
passageira. Mas o ensinamento que essa dor proporcionará será para toda a vida.
Então, mãe, permita-se chorar, soluçar, promover dilúvios, sofrer... Viva a dor
de ser mãe com câncer e (RE)nascer com todo esse aprendizado. E você, filho do
câncer, permita-se a oportunidade de transformar-se num adulto resiliente.
E, em todo esse processo DE APRENDIZADO E CRESCIMENTO MÚTUO,
não se esqueçam de AGRADECER!
Thyana Galvão é professora da UFPE e arquiteta