sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Editorial: A Casa da Gente

 


Está previsto o desabamento de vários bairros em Maceió devido ao colapso de uma mina de sal-gema. Desde 2018 que vários bairros seguem afundando, e hoje, 1º de dezembro de 2023, apareceu as imagens da mina 18, no Bairro do Mutange. Somente esse mês foram registrados seis tremores na região. O risco de colapso da mina pode abrir cratera do tamanho do estádio do Maracanã, que tem 110 metros de comprimento por 75 metros de largura. 

O que me fere pessoalmente, nessa história toda, é que minha família está seriamente atingida. A foto no alto do texto é na entrada de Maceió, com a faixa do MST/AL. Se até agora não há notícias de vítimas fatais, não se pode dizer que houve assassinatos de vidas e não falo de vidas de carne e osso, mas falo de lares e famílias, de anos e anos de vidas, comemorações, rotinas, pais trabalhando e filhos estudando, almoços regados a sururu (prato típico dos maceioenses).


Por que eu falo que essa história me atinge pessoalmente? Não exatamente por mim, uma pessoa nascida, criada e residente no Recife, mas por meu pai, o octogenário José Luiz, e principalmente minha avó, Sebastiana Maria do Nascimento (1917-2014). A família de meu pai vivia na roça, no interior de Alagoas e tinha como patriarca o meu avô paterno, Rozalino Luiz do Nascimento (1894-1965).

Na adolescência, meu pai teve uma oportunidade de estudar no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial - Senai, em regime de internato. Formado em 1959, foi trabalhar em uma usina de açúcar  e anos depois, em 1965, ao sair dessa usina, regressou a Maceió, pouco antes de minha avó se mudar para a casa que hoje, 2023, está sendo destruída. Ao final daquele ano, meu avô sofreu um infarto e morreu em casa, que também foi o local do velório. O enterro foi no dia 31 de dezembro, no Cemitério Santo Antônio, em Bebedouro. Sim, o mesmo que agora está desativado desde 2020.



MInha Vó Sebastiana trabalhava, de forma voluntária, para a Igreja. Católica fervorosa, minha avó andava pelas comunidades bem mais pobres da região e ajudava no matrimônio de casais "amigados" (como se dizia quem se juntava sem casar na igreja ou no civil) e em batizados de crianças, além de fazer catequese de crianças para fazer a Primeira Eucaristia. Em seu quarto simples, Vó Sebastiana mantinha um oratório de madeira onde haviam várias imagens de santos, como Nossa Senhora da Conceição e Santa Luzia, além de uma vasta coleção de terços.

Na casa onde Vô Rozalino faleceu, Vó Sebastiana já tinha os filhos criados, a exceção do caçula José Maria, que tinha 10 pra 11 anos e do neto Cícero Sérgio, de idade também próxima, que também adotara como filho. Durante a vida, criou, além de seis filhos (dois mortos ainda bebês, ou "anjos", como se dizia à época), alguns enteados (Vô Rozalino, ao falecer, deixara 23 filhos, sendo uma antes de casar, 16 com a primeira esposa e seis com minha avó). 



Então ela nos anos 1970 e 1980 começou a criar os netos (cujos pais e mães saíam para trabalhar). A essa altura, meu pai já havia se mudado para o Recife, onde se casou com minha mãe e onde nascemos, primeiro, minha irmã Taciana e depois eu. Na década de 1990, começaram a chegar os bisnetos e na década de 2010, os trinetos. Quando faleceu, em 2014, Vó Sebastiana já tinha três trinetos, dois netos de Maria Mônica, que é filha de Maria Margarida e havia outro trineto, neto de Fátima, filha de Maria Irene.

Tida como a força espiritual da família, Vó Sebastiana sempre tinha muitas histórias de fé. Perto de um Natal nos anos 1990, um dos netos havia sido atropelado e foi internado em um hospital. Como não poderia fazer muito, já idosa, recolheu-se para rezar e pedir intercessão dos santos. Na véspera de Natal, o garoto já estava em casa, envolto em gesso, mas estava recuperado. 



Em outra ocasião, tentava atravessar a movimentada avenida para ir à Igreja de Bom Parto. Alguém a pegou pela mão e juntos, atravessaram a avenida. Aos pés da escadaria do templo, quando ela virou para agradecer a essa pessoa, não havia mais ninguém lá. Quem ouvia a história, dizia logo que era um Anjo da Guarda. Mesmo quem não acreditasse em anjos, santos ou outras entidades, sabia que, em se tratando de Dona Sebastiana, isso era plenamente possível.

Em 2013, tentando fazer uma limpeza na casa (até porque seguia plenamente ativa aos 96 anos), acabou levando uma queda, o que detonou sua saúde em poucos meses, sempre cuidada pela filha Maria Margarida e pela neta Maria Mônica. Já doente, ela disse, de uma forma certeira: "Todo esse bairro vai se acabar, não haverá mais nada. Ainda bem que eu já não vou mais estar aqui para ver isso tudo.




E, 15 dias antes de completar 97 anos, no dia 04 de março de 2014, ela partiu nos braços de sua neta Maria Mônica dizendo o quanto seu esposo, o Velho Rozalino, ainda estava lindo, mesmo depois de tantos anos de ausência. No velório - que estava acontecendo na casa, a pedido da Vó Sebastiana em vida - amigas e companheiras da paróquia diziam que, "a cada Ave Maria rezada, uma Rosa estava sendo levada para Nossa Senhora, por Dona Sebastiana".

Maria Mônica e outros moradores do Bom Parto seguem na região, porque até agora nada foi resolvido como o auxílio aluguel e não querem sair e deixar tudo para trás. "Se eu fizer isso, no outro dia eu volto e não vai ter mais nada, nem as portas". Por mais que se diga que a vida é o mais importante, realmente é complicado ver uma vida de décadas, cinco gerações em um só Lar, ser deixada toda para trás. É muito difícil quando o assunto é a Casa da Gente.

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Nota do Blog: Toda a família já está abrigada em lugares seguros. Os netos de minha prima Maria Mônica (assim como todas as crianças das comunidades, de acordo com as famílias) já estão em segurança num bairro afastado da região. Os filhos - que trabalham na empresa fazendo a mudança de moradores que estão saindo dos bairros - também vivem em áreas mais afastadas. 

A mãe dela - minha Tia Margarida - já mora em outro bairro há algum tempo e chamou minha prima pra viver com ela. Minha prima e seu esposo seguem na casa enquanto não acham uma nova casa pra alugar e a comunidade segue unida e resistindo, pois não querem ver seus bens sendo saqueados

Nota do Blog 2: Você é morador da região atingida? Conte sua história aqui pra gente e faça todo o Brasil ver através do nosso Blog.

Nota do Blog 3: Todas as fotos foram tiradas do Twitter do MST