quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

#VcNoBlog Prof. Angelo Brás abrilhanta nosso espaço


O professor Angelo Brás Fernandes Callou, da Universidade Federal Rural de Pernambuco, aceitou nosso convite e não só escreve o texto que será publicado a seguir, como também fez a ilustração acima. Mestre, muita honra de publicar suas letras e sua arte. Aqui o senhor sempre terá espaço! Gratidão!

Tinha Que Ser Nelson RodriguesPor Angelo Brás Fernandes Callou

O Beijo no Asfalto, na sua terceira versão cinematográfica (em cartaz em São Paulo), estreia do ator Murilo Benício na direção, veio para interpelar a caretice, a violência e a sordidez na polícia e na imprensa do Brasil atual. Tinha que ser o teatro do pernambucano Nelson Rodrigues (1912-1980), refletido na tela do cinema, para espelhar o que somos em matéria de preconceito, de ética e de costumes (vide trailer nas referências).

O Beijo no Asfalto de Benício é um convite à perda da ingenuidade, ou se quiserem da virgindade cognitiva. Impossível sair ileso do filme, como não se sai ileso de nenhuma leitura da obra de Nelson Rodrigues, ou da representação dela pelos atores na carne viva do teatro.

Quando li, por exemplo, Álbum de Família, ainda muito jovem, em virtude de a peça ter sido censurada em 1945 e só encenada em 1967, fui tomado de espanto. As diferentes facetas da sexualidade humana e, sobretudo, as diversas e contraditórias personas que este humano assume na família e na sociedade, são fio condutor de Álbum de Família e, talvez, de toda a dramaturgia rodriguiniana. Entre a censura da peça e o espanto, fiquei com o espanto, conselheiro por excelência da superação da ignorância e do preconceito. O espanto educa, pois suscita a dúvida, a curiosidade, como já se referiu o também pernambucano, Paulo Freire.

Daí pra frente, Último Tango em Paris (Bernardo Bertolucci, 1972), Garganta Profunda (Gerard Damiano, 1972), Império dos Sentidos (Nagisa Oshima, 1976), Je Vous Salue, Marie (Jean-Luc Godard, 1985) e tantos outros filmes que polemizaram a sociedade brasileira pós-64, tiveram um impacto mais estético do que moral em mim. É de se perguntar: a polêmica foi um sinal de que o grande público desconhecia o teatro de Nelson Rodrigues? Muitas peças do dramaturgo foram censuradas, mas, também, recorrentemente encenadas país afora, ou adaptadas para o cinema e para a TV.

No teatro, são emblemáticas as montagens realizadas em São Paulo, por Antunes Filho: Paraíso zona norte (1989), baseada em A Falecida e Os Sete Gatinhos; Senhora dos Afogados (2008); A Falecida Vapt-Vupt (2009); e Toda Nudez Será Castigada (2012). No Recife, com direção do saudoso Antonio Cadengue, são dignas de nota Senhora dos Afogados (1993) e Doroteia (2014).

No cinema, há repetidas adaptações, tal como no teatro, das obras de Nelson Rodrigues. Muitas delas, com sucesso de crítica e bilheteria. Entre as mais marcantes, estão (vide referências no final do texto) as de Arnaldo Jabor, Toda Nudez Será Castigada (1973), que arrebatou o Urso de Prata, no Festival de Berlim, e Darlene Glória, o prêmio de melhor atriz no Festival de Brasília; e O Casamento (1974), com a jovem atriz Adriana Prieto (1950-1974), falecida precocemente num acidente de automóvel.

São também importantes as adaptações realizadas para o cinema, por Braz Chediak, em Perdoa-me Por Me Traíres (1980), com a participação da grande atriz Henriette Morineau, assistida no moderníssimo e não mais existente Cine Veneza, no Recife; Álbum de Família – uma história devassa (1981) e Bonitinha, Mas Ordinária (1981), também com Henriette Morineau no elenco. Somam-se a estas importantes adaptações Boca de Ouro (1963), de Nelson Pereira dos Santos, A Falecida (1965), de Leon Hirszman, restaurada digitalmente pela Cinemateca Brasileira, e, claro, O Beijo, com direção de Flávio Tambellini (1964) e O Beijo no Asfalto (1981), de Bruno Barreto.

Para a TV, é já clássica a direção de Antunes Filho, em Vestido de Noiva (1974). São estas e muitas outras adaptações da obra de Nelson Rodrigues que reafirmam a importância do dramaturgo na cultura brasileira.

No que se refere especificamente a O Beijo no Asfalto, ouso dizer, que o Beijo de Benício supera o de Tambellini e o de Barreto. A adaptação que o ator-diretor faz desse texto revela, para o grande público, não apenas a perspicácia em apresentar a atualidade da obra, aliás, atualíssima, apesar dos quase 60 anos que separam do lançamento da peça, mas, sobretudo, deixar visível o país em que vivemos.

A trama é construída a partir do atropelamento de um jovem por uma lotação. Arandir, que transitava no momento do acidente, sai em socorro da vítima, abaixa-se e, repentinamente, beija a boca do desconhecido, que falece no local. A cena é observada pelos transeuntes, por um jornalista fotográfico, que fotografa o ato, e pelo sogro que, “coincidentemente”, estava próximo ao beijo no asfalto.

Na adaptação de Murilo Benício, a cena do beijo é apenas insinuada, como o é na versão de Tambellini. O beijo no texto original da peça não aparece em cena, tal como acontece na adaptação de Bruno Barreto, a sugerir interpretações diversas sobre o ocorrido no momento do acidente. É apenas ao final dos três filmes, e num outro contexto dramático, que a cena do beijo toma forma. Particularmente, considero a última cena elaborada por Bruno Barreto como a mais impactante e poética das versões cinematográficas.

Por mais que Arandir se esforce em explicar à polícia, à imprensa, aos colegas de trabalho e à própria mulher, que o beijo fora um pedido da vítima – um beijo de misericórdia –, as dúvidas permanecem e o preconceito vai assumindo proporções vis. A imprensa, mancomunada com a polícia, ávida por vender jornal e resolver crises internas do jornal, cria uma série de infames fake news (para usar a expressão de agora) que destroem a carreira profissional e a vida privada do jovem Arandir. Polícia e imprensa, para forjar verdades, violentam a mulher do Arandir e do atropelado, sem nenhum rasgo de escrúpulo. Um misto de instinto de sobrevivência, de medo e de total ausência de direito envolve essas duas mulheres indefesas. É o Brasil de vísceras expostas – Marielles na sociedade contemporânea.

Arandir, igualmente humilhado e indefeso, salva, pela dignidade, todo estado de coisas, numa frase emblemática do texto. Diz ele:

“Pela primeira vez, na vida! Por um momento, eu me senti bom! (furioso) Eu me senti quase, nem sei! Escuta, escuta! Quando eu te vi no banheiro, eu não fui bom, entende? Desejei você. Naquele momento, você devia ser a irmã nua. E eu desejei. Saí logo, mas desejei a cunhada. Na Praça da Bandeira, não. Lá, eu fui bom. É lindo! É lindo, eles não entendem. Lindo beijar quem está morrendo! (grita) Eu não me arrependo! Eu não me arrependo!”

Essa frase nos revela que o beijo entre aqueles dois homens, pouco importa se vestidos de azul ou de rosa, transita, a meu ver, de um ato de misericórdia para o âmbito do sublime. Sublime no sentido atribuído por Kant, segundo Alexandra de Almeida, que o distingue do belo. Isto é, enquanto o belo emana da imaginação, em comum acordo com a aptidão natural de cada um, do prazer da contemplação, provocada pela imagem de um objeto (de arte, uma paisagem, um céu azul), o sublime, ao contrário, afronta a imaginação. Perturba. Causa admiração e espanto. Diz Kant, por meio de Almeida: “... o belo encanta, o sublime comove.”

Benício deixa a impressão de que sabe muito bem o que faz com o seu Beijo: sem didatismos, apresenta Nelson Rodrigues aos estreantes, ao reunir depoimentos dos atores do filme, entre eles os de Fernanda Montenegro, nos momentos da leitura dramática da obra, ao redor de uma grande mesa oval; mistura teatro (ensaio e encenação) e cinema ao mesmo tempo, muitas vezes demarcando suas diferenças, quando expõe as câmeras para o público (uma alusão a Godard?); e cria uma espécie de suspense hitchcockiano, em preto e branco. Benício realiza, por assim dizer, um filme Noir, no sentido da estética cinematográfica do chiaroscuro, da diligência policial corrupta, da violência, do cinismo, dos personagens arquétipos. Tudo à brasileira. Mais claro que escuro.

São Paulo 31 de janeiro de 2019

Referências
Audiovisual

Boca de Ouro (1963) https://mail.google.com/mail/u/0/?tab=wm#inbox?projector=1

O Beijo (1964) https://www.youtube.com/watch?v=puNbJvMe1GU

A Falecida (1965) https://www.youtube.com/watch?v=SX0oebMhiuw&feature=youtu.be

Toda Nudez Será Castigada (1973) https://www.youtube.com/watch?v=TQ-CmuWIz_A&feature=youtu.be

Vestido de Noiva (1974) https://www.youtube.com/watch?v=TIlilGGed7Y&feature=youtu.be

O Casamento (1974) https://www.youtube.com/watch?v=BxNE7RGP_7E&feature=youtu.be

Perdoa-me Por Me Traíres (1980) https://www.youtube.com/watch?v=icJ0ZU9ljPo&feature=youtu.be

Álbum de Família – uma história devassa (1981) https://www.youtube.com/watch?v=7z835OfJNDg&feature=youtu.be

Bonitinha, Mas Ordinária (1981) https://www.youtube.com/watch?v=mTfd84AVsVQ&feature=youtu.be

O Beijo no Asfalto (1981) https://www.youtube.com/watch?v=eNhnVXmky6A&t=511s

O Beijo no Asfalto (2018). Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=h2rCvvtRo1g


Texto
Alexandra de Almeida. A noção do sublime em Kant e a questão da comoção na arte. https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/14343/14343_1.PDF