quarta-feira, 31 de julho de 2019

#VcNoBlog Ângelo Brás em Nova participação

Estamos numa esquina perigosa: o cinema nos anuncia


Certa vez, encontrei meu professor de Limnologia nos corredores da graduação universitária. Não sei por que cargas d’água, propôs de supetão que eu lhe indicasse um livro. Faria o mesmo, em contrapartida. Aceitei o desafio.
Eu era um jovem impertinente, embora fosse um aluno um tanto quanto silencioso em sala de aula e sempre respeitoso com os meus professores. Levei para ele, não apenas a indicação do livro, mas a própria obra: O mito da neutralidade científica (Imago, 1975), do filósofo brasileiro Hilton Japiassu (1934-2015). Era minha resposta à afirmação que fizera em aula, de que a ciência é apolítica.
Dias depois, devolveu-me o livro sem nenhum comentário e sem a indicação prometida. Entretanto, devo a ele, indireta e diretamente, a Hilton Japiassu, a compreensão que tenho até hoje de que os atos científicos, queiram ou não, são atos políticos. A escolha de um objeto de pesquisa já revela, por si só, a nossa opção ideológica.
Passados tantos anos, lembrei-me ainda com clareza desse momento, na abertura do curso Seis análises sociológicas e estéticas no cinema, realizada na semana passada, pelo professor Claudinei Cássio de Rezende, no Museu da Imagem e do Som, de São Paulo.
Rezende informa que planejou o curso e a escolha dos filmes a serem visionados e analisados nas aulas, a partir de sua opção humanista radical, diante do mundo. De imediato, levanta a questão ideológica, a partir de Lukács, em A destruição da razão, para afirmar que não existe ideologia inocente. Tudo é ideologia, afirma. Dizer-se numa postura de neutralidade ideológica é também ideologia. Com ironia, comenta que há três anos seria totalmente impensável ou desnecessário ter de demarcar fronteiras ideológicas na introdução de um curso. O recado estava dado!
Os seis longas-metragens europeus contemporâneos assistidos tratam das relações sociais e do trabalho diante da exclusão social provocada pela reestruturação produtiva do capital, em tempo de mundialização das culturas e dos mercados. Sem nenhuma concessão à estética de personagens heroicos, os filmes, ao contrário, apresentam heróis negativos, ambíguos, misto de decência e de atitudes nem um pouco nobres. São heróis realistas, devido à verossimilhança de suas vidas com o mundo vivido: o desemprego insolúvel, de operários e executivos, o desaparecimento de profissões, a descartabilidade dos idosos do mundo do trabalho, a falta de perspectiva para os jovens, a restrição das liberdades individuais, com ênfase nos imigrantes (africanos, iranianos) e sua subjugação ao trabalho escravo, sobretudo de mulheres. Ao lado disto, a concorrência desenfreada e inumana, a instabilidade dos casamentos e das relações interpessoais, diante da crua e inescapável realidade, sem portas de emergência. É O anjo exterminador (1961) de Buñuel, ecoando no século XXI.
Assistimos a esses heróis-personagens se debaterem com o desalento, o homicídio, o furto, o alcoolismo, a solidão, a depressão, o suicídio, a desesperança. Um beco sem saída, com raros e sublimes momentos de decência, de humanidade, de solidariedade e de amores inconclusos. As lágrimas caem!
Dos filmes apresentados, quatro deles são arrebatadores. Em Segunda-feira ao sol (Catalunha, 2002, 113 min.), dirigido por Fernando León de Aranoa, assistimos à crise econômica na Espanha, que gerou desemprego de longa duração, atingindo, em 2017, mais de 26% da população economicamente ativa. Santa, personagem principal do filme, ao ser demitido da indústria naval, passa a se reunir cotidianamente num bar com outros trabalhadores, desolados pela mesma condição. Todas as esperanças de encontrar emprego vão se desmilinguindo, à medida que as experiências individuais de cada um vão sendo relatadas no grupo. Santa, enquanto transgride no dia a dia, come sem pagar no supermercado (extrai sua mais valia), sonha ir para a Austrália, espécie de fantasia numa realidade caótica. Ao mesmo tempo cuida, protege e se solidariza com os demais companheiros, diante dos dramas subjetivos que se agravam, até o suicídio de um deles. Os ponteiros dos relógios giram no sentido inverso, numa das cenas emblemáticas da desesperança.
Os filmes Biutiful (México/Espanha, 2010, 130 min.), dirigido por Alejandro González Iñarritu, e Bem-vindo (França, 2009, 110 min.), realizado por Philippe Lioret, abordam o enfrentamento de imigrantes na Espanha (Barcelona) e na França (Calais). Biutiful tem seu herói negativo representado pelo personagem Uxbal, que vive de atividades escusas com chineses e africanos, numa Barcelona profunda, para além das obras de Gaudí. Tal como Santa, Uxbal é solidário e procura proteger de maneira mais concreta os imigrantes subjugados à condição de trabalho escravo. Mas trata-se de um personagem mais complexo.
Infeliz no casamento, adoecido, Uxbal busca desesperadamente encontrar uma saída para proteger seus dois filhos, diante da iminência da morte. Os caminhos trilhados o colocam numa espécie de labirinto, cujas escolhas não o levam a lugar nenhum. Não há como não lembrar aqui do magnífico conto sobre o tempo, o tempo disforme, de O jardim dos caminhos que se bifurcam, de Jorge Luis Borges.
Biutiful é o filme mais impactante do conjunto analisado. É um mergulho profundo no inferno, a própria realidade vivida pelos seus personagens dramáticos num mundo já distópico. Uxbal pensa em ser um herói positivo, comenta Claudinei Rezende, mas não pode salvar os outros, nem a si mesmo. Mal consegue salvar sua própria família. Os aquecedores a gás de segunda mão que compra para os imigrantes numa madrugada fria acabam por matar todos. A causalidade do imponderável. Uxbal, no seu desespero, conversa com sua melhor amiga, que lhe diz, no momento mais verdadeiro da trama, que não se pode escapar do sofrimento!
Assim como em Biutiful, no filme Bem-vindo, o jovem imigrante iraniano de 17 anos, Bilal, encontra também um protetor, quando chega a Calais: o professor de natação. A trama é movida pelo amor. O amor inconcluso ou impossível, como é o caso do professor de natação por sua ex-mulher, e de Bilal por uma jovem iraniana que mora em Londres. Ambos creem na força imperecedoura do amor.
Impedido de encontrá-la, devido a sua condição de imigrante ilegal na França, e diante do insucesso ao atravessar o Canal da Mancha no porão de um navio, Bilal treina compulsivamente a natação, com o único objetivo de alcançar, a nado, a outra margem do Canal. As cenas são dramáticas e revelam, ao longo do filme, as condições degradantes em que vivem os imigrantes ilegais em Calais. O assentamento Jungle, também conhecido como Camp de la Lande, chegou a reunir, nessa margem do Canal, quase quatro mil refugiados e imigrantes. O filme teve um impacto tremendo na sociedade francesa.
Finalmente, o filme O corte (Bélgica/França, 2005, 122 min.), do diretor grego Costa-Gavras. Quem é da minha geração deve ter assistido dele, em plena ditadura militar, aos filmes Z (1968), Estado de sítio (1971) e Seção especial de justiça (1975), que obtiveram grande repercussão entre os jovens da época.
Baseado no livro do americano Donald Westlake, o filme narra mais uma situação do desemprego generalizado nos dias atuais, desta vez, entre os executivos. O anti-herói agora é o personagem Bruno Davert, repentinamente demitido da empresa onde trabalhava há 15 anos. Diante das dificuldades de se engajar novamente no mercado de trabalho altamente competitivo, Bruno se transforma num arrivista. O campo de luta do personagem é interno, o de se vender a si próprio a qualquer custo: o indivíduo-mercadoria. Culpabiliza-se pelo seu fracasso. Não há nele espírito de corpo, e a corrosão de seu caráter surge daí.
Bruno, após várias tentativas, sem sucesso, de se engajar nas empresas em que realiza entrevistas, decide eliminar seus concorrentes, assassinando-os um por um. Em toda a narrativa do filme, o medo de Bruno não é o de que seus crimes sejam descobertos, mas o de ter seu nível profissional rebaixado à proletarização.
Saio do MIS, atravesso a Av. Europa, e me defronto com uma família inteira mendigando em pleno coração do Jardim Europa. Se a vida imita a arte, o cinema é um prenúncio da sentença de Andrzej Wajda de que estamos numa esquina perigosa. A rua a ser tomada nesta esquina poderá nos levar...
Bairro de Campos Elíseos, SP, 28 de julho e 2019.

Texto e Ilustração: Ângelo Brás