terça-feira, 22 de julho de 2025

#EntrevistasInéditas Dan Stulbach e o Mercador de Veneza


Em uma montagem moderna e arrojada de O Mercador de Veneza, clássico de Shakespeare, um veterano do teatro brasileiro se aprofunda em um dos personagens mais complexos da literatura dramática: Shylock. O ator, com uma vasta carreira que transita entre teatro, cinema e televisão, revela os desafios e o processo de criação por trás da sua interpretação.

O maior desafio, segundo ele, foi construir um personagem que não caísse em um estereótipo. Para isso, o trabalho começou muito antes de pisar no palco, com longas conversas com o adaptador Bruno sobre o texto e a essência da peça. "Primeiro teve um período de grande conversa e diálogo sobre o papel, sobre o texto, e sobre o que a gente estava querendo dizer", explica.

Diferente das famosas interpretações de Al Pacino (raivoso e amargurado) ou Patrick Stewart (bom vivão, mas deslocado), o ator optou por um Shylock "múltiplo", com carências e desejos claros por aceitação, que se manifestam de diversas formas: "Uma hora com humor, uma hora com raiva, outra hora com calma. Eu vou variando." A decisão de dar um sotaque ao personagem foi outro ponto crucial para sublinhar a sua condição de estrangeiro, tornando o preconceito ainda mais evidente.

Apesar de ter apenas cinco cenas — o que torna Shylock o personagem principal de Shakespeare com menos tempo em cena —, o ator enxergou nisso uma oportunidade de aprimorar cada momento: "Isso é ruim e é bom também, porque você pode trabalhar melhor todas elas."

A direção de Danielle Stiebloff e a relevância da peça

A direção de Danielle Stiebloff, que morou em Londres e trouxe uma visão contemporânea ao espetáculo, foi fundamental para o processo criativo. "Ela trouxe os vídeos, trouxe o microfone, trouxe a bateria", conta o ator, que elogia a abordagem moderna e a colaboração sem pressa da diretora. "Ela deixa que eu faça, que eu erre, daí eu testo uma outra coisa... Onde eu estou sem pressa, é tudo o que você quer."

Para o público, a montagem é uma oportunidade rara de ver uma peça de Shakespeare que não é encenada no Brasil há mais de 20 anos. "É um espetáculo diferente, com texto pouco montado, mas que é muito atual", garante o ator, destacando a concepção moderna, a acessibilidade e a forma como a peça provoca o público.
A relevância da obra para os dias de hoje, que aborda temas como justiça, preconceito e vingança, é "total" para o ator. Ele compara a dinâmica social a um elástico: "Ela vai, volta pouco, aí vai, volta pouco. É uma dança." Nesse contexto, a arte cumpre o papel de impulsionar o avanço e o entendimento mútuo.

O ator também revela que, além de seu personagem, se sentiu intrigado por Antônio, o mercador, por sua complexidade e angústias. Ele ainda aponta para a personagem de Pórsia, uma mulher forte que, para ser aceita e ter voz no tribunal, precisa se disfarçar de homem. O ator ressalta a genialidade de Shakespeare em criticar as normas sociais da época.

Sobre a diferença de preparação para teatro e cinema, ele explica que, no cinema, o tempo é mais curto e o diretor tem uma visão mais definitiva. Já no teatro, o processo é mais longo e aprimorado a cada apresentação. "O aprimoramento do teatro vai em outro lugar, né? Eu digo assim, é o corpo inteiro, é diferente", conclui.


Vamos ler a entrevista exclusiva com Dan Stulbach?

O Mercado do Veneza é uma obra.
Clássica e complexa de Shakespeare. Qual foi o maior desafio para interpretar seu personagem e como você se preparou para ele?

Eu primeiro peguei o texto, fiquei muito em cima do texto do Bruno, na adaptação do Bruno, e passei a rediscutir com ele palavras e frases a partir de outras traduções, ou mesmo do texto original no inglês, jeitos melhores de dizer aquilo que eu estava querendo dizer, porque ele suprimiu alguns textos, tirou algumas frases, botou-se, então... Primeiro teve período de grande conversa e diálogo sobre o papel, sobre o texto, e sobre o que a gente estava querendo dizer. Então, todo trabalho, primeiro, definição do que seria dito. Depois, a partir do ponto que eu decorei, e aquilo se tornou realmente o texto, afinar melhor a maneira de dizer aquilo. Ou imprimo isso num tom de humor, ou imprimo isso num tom de raiva.

Shylock, a princípio, de modo geral, é personagem que pode ser feito como uma pessoa já estabelecida, Então ele é nobre ou ele é uma pessoa que ainda... Ou ele é uma pessoa já estabelecida, mas que tem uma relação de raiva com o que ele sofreu. Então, por exemplo, Al Pacino, quando faz o Sherlock, faz Sherlock raivoso, amargurado. No teatro, Patrick Stewart fazia ele bom vivão, cara que não tinha raiva dos outros, mas sabia que não pertencia àquele lugar. Então você tem que escolher o seu caminho, vamos dizer assim. E a partir daí você vai construindo. O meu caminho foi escolher que ele fosse múltiplo. Ele tem carências claras, desejos claros de aceitação, mas ele vai mostrando isso de diversas maneiras. Uma hora com humor, uma hora com raiva, outra hora com calma. Eu vou variando.

Então a partir daí é o aprimoramento dessas escolhas. Aprimorar, aprimorar, buscar mais verdade, não ser igual em uma cena com a outra. São apenas cinco cenas, né? Doze personagens interessantes de Shakespeare é o que menos cenas tem. Então, isso é ruim e é bom também, porque você pode trabalhar melhor todas elas. 

Falando em trabalhar, a Danielle Stiebloff fez a direção. Como foi essa parceria e o que ela trouxe de novo para a sua interpretação ou para a montagem em si?

Eu adoro a Dani, acho ela uma baita artista. O trabalho com ela foi muito bom porque, primeiro, foi muito sincero. A Dani morou muito tempo em Londres, se formou lá. Ela tem uma influência do teatro universal que é muito boa, moderna, contemporânea. Então, ela trouxe os vídeos, trouxe o microfone, trouxe a bateria. E trouxe entendimento, uma visão contemporânea, nova, que acho que fez muito bem ao espetáculo e a mim. Na minha relação comigo como ator, uma relação que ela tem muito carinho por mim, eu tenho muito carinho por ela, e a gente tem muito respeito pela opinião do outro.
Agora, o que eu gosto é que ela é uma diretora sem pressa, ou seja, ela deixa que eu faça, que eu erre, daí eu testo uma outra coisa, daí eu falo, ó, vou fazer diferente hoje, aí eu vou fazendo diferente até A hora que ela fala assim, bom, de tudo isso que você fez, o que eu mais gosto é aquilo. Então ela também me dá parâmetros claros em cima do que eu tô criando, me deixando criar. Onde eu tô sem pressa, é tudo que você quer.

O que o público pode esperar de diferente nessa montagem?

A meu respeito, personagem que nunca fiz de uma maneira que eu nunca fiz. Eu, por exemplo, ensaio durante muito tempo o Shylock sem sotaque. Eu não queria que ele tivesse sotaque, eu não queria que ele tivesse nenhum caminho fácil. Depois a gente entendeu que ele tinha que ter sotaque para que ele fosse estrangeiro, a questão do estrangeirismo se manifestasse ainda mais evidente. Então, ele é personagem na forma, no gesto, na voz, diferente de tudo que eu já fiz. E acho que o público pode ver raro espetáculo. Primeiro, uma montagem de Shakespeare, infelizmente não são muitas. Então, uma montagem de Shakespeare, com uma concepção moderna, com uma acessibilidade absoluta, digo, todo mundo entende o espetáculo, e que é absolutamente contemporânea, e que traz uma história tão pouco montada no Brasil também.

O Mercador, acho que a montagem mais recente foi com Pedro Paulo Rangel. Isso já faz mais de 20 anos, se não me falhar a memória. Então, espetáculo diferente, com texto pouco montado, mas que é muito atual, e montado e construído de uma maneira acessível e interessante, e que tenho certeza você nunca viu. É muito diferente a maneira que o espetáculo acontece.

A peça aborda temas como justiça, preconceito, vingança. Qual a sua leitura sobre a relevância.
Desses temas para o público atual?

A relevância é total. A relevância é total porque ela sempre teve presente as preocupações com igualdade, com justiça, com relação, com entendimento do outro, incapacidade de entendimento do outro, aceitação do outro, aceitação de si mesmo. São questões eternas, muito presentes na história da humanidade, mas nem sempre bem tratadas, bem cuidadas, bem faladas. E o Shakespeare fez isso muito bem. Então, algumas dessas questões, infelizmente, são atuais, mais atuais do que eram. Talvez se a gente fizesse esse espetáculo há 10 anos atrás, algumas coisas, curiosamente, não teriam talvez tanta polêmica quanto tem hoje. Vou abrir parênteses rápido aqui. Eu fiz uma novela chamada A Função do Querer. Trabalhava, entre outras coisas, a questão transexual. Eu tinha personagem da Carol, abordava esse assunto. Contar aquela história, naquele momento que nós contamos em 2017, teve efeito e uma reação.

Talvez há cinco anos, depois que foi reprisada na pandemia, teve outra reação, muito mais violenta, curiosamente. Por momento que o Brasil vivia, por momento... Enfim, talvez troque em lugares diferentes.

A rede social, os grupos radicais mesmo presentes. A sociedade, eu tenho essa impressão, não avança num fluxo natural como o riacho. É elástico, ela vai, volta pouco, aí vai, volta pouco. É uma dança. Então, a arte... Cumpre papel aí, que eu acho que é o de impulsionar o avanço, impulsionar o entendimento e a aceitação. E esse espetáculo é espetáculo que fala disso.
Vai provocar as pessoas nesse sentido.
De novo, acho que sim, sabendo que as melhores pessoas são as que lá estão com a gente. Mas, de novo, estamos fazendo o nosso papel.

Além do seu personagem, há algum outro papel nessa peça que você acha particularmente intrigante, que gostaria de interpretar em algum outro momento ou passou pela sua cabeça?

Eu acho que o Antônio é personagem muito bom, que é o personagem que o César faz, que é o personagem central, o personagem do Mercador de Veneza é ele. Mas não por isso, mas porque eu acho que é personagem muito complexo, interessante de fazer, tem questões ali, muitas angústias, é personagem contraditório. Ele é bom, ele é interessante. E a Pórsia também é baita personagem que a Gabriela faz. Ela tem muito mais fala que eu, é personagem que aparece muito mais. Mas é uma mulher forte, que provoca a sociedade, depois se transveste de homem para poder ser aceita em tribunal, que, aliás, é uma questão que a pessoa traz. Para poder ser reconhecida na sociedade, ela tem que se vestir de homem. E poder ir no tribunal, onde ela é muito inteligente, luta pelo quer.

E se a gente pensa no Shakespeare, só rapidamente, ele faz personagem numa época que só homens podiam fazer teatro. Então, era homem interpretando uma mulher, tendo que ser de homem para poder ser aceita. Quer dizer, ele estava exatamente criticando o fato daquele personagem só poder ser também interpretado por homem. Então, você vai entendendo outras coisas a partir dali, é muito legal.

Você tem uma carreira bem vasta, né? Teatro, TV, cinema. Na tua fase de preparação e de abordagem de personagem, tem alguma diferença? 

Acho que sim. Agora estou fazendo filme, né? Uma praia em nossas vidas. Na direção do Guto Boteiro, escrito e dirigido por ele. Então, como foi escrito e dirigido por ele, eu ouço muito do que ele quer de mim. Quando você é escolhido para filme, o diretor tem uma opinião muito forte e presente sobre o que ele quer que você faça. É diálogo também, mas ele, de alguma maneira, é o dono daquele processo. E você normalmente também tem menos tempo para elaborar aquele personagem. E também como a sua escolha também tem muito a ver com a tua aparência, às vezes ele já meio que parece pouco com você no visual e tal, essas coisas vão se trabalhando, vão se moldando, mas o período é mais curto.

Para o teatro, o período é mais longo de preparação e você ainda tem o processo das apresentações para ir aprimorando e mudando. E esse aqui também tem a ver com a complexidade de cada personagem que você encontra. Eu acho que esse aqui do Shylock é dos mais difíceis que eu já fiz. E personagem que eu nunca estava feliz, até certo ponto, eu nunca estava satisfeito. Eu estava sempre mudando, pesquisando, inconformado, não entendia uma palavra. Aí eu li negócio, eu li muito, cara. Vi muito vídeo para... Para conseguir ficar satisfeito na medida, na dimensão que o personagem exige. E já aconteceu no teatro de não ter também tanta essa preocupação pelo personagem ser menos complexo. Então, acho que cada coisa é cada coisa. Agora, afinar o gesto... O momento da filmagem é momento, evidentemente, muito especial na... No cinema.

E o momento da preparação, do ensaio, da definição é momento muito importante no teatro. Porque, às vezes, você chega para filmar e muda coisas ali. E você tem que estar disponível para isso. E o aprimoramento do teatro vai em outro lugar, né? Eu digo assim, é o corpo inteiro, é diferente.


📌 Serviço  

🎭 Espetáculo: O Mercador de Veneza, de William Shakespeare  
📅 Quando: 24 de julho a 2 de agosto (quinta a sábado)  
🕗 Horário: 20h  
📍 Local: Caixa Cultural Recife – Av. Alfredo Lisboa, 505  
🎟️ Ingressos: disponíveis no site caixacultural.gov.br  
💺 Capacidade: 114 lugares  
⏱️ Duração: 1h40  
🎭 Gênero: Comédia dramática  
🔞 Classificação: 12 anos