O escritor, ativista e educador Nicolas Ramanush se define como alguém cuja missão é restituir a dignidade e a memória da etnia romani no Brasil. Sua presença na Fenearte, em Recife, para uma aula sobre cultura cigana, serviu de ponto de partida para um diálogo profundo sobre uma trajetória que entrelaça a literatura, a militância e o resgate de uma ancestralidade muitas vezes invisibilizada pela história oficial.
“Minha escrita é atravessada por uma escuta atenta das vozes silenciadas,” afirma Ramanush. “Escrevo para reencantar o olhar sobre a presença cigana em território brasileiro, resgatando narrativas que nos foram negadas e reconstituindo os vínculos entre a palavra, a ancestralidade e a resistência.”
Uma Militância Nascida da Omissão
A luta de Nicolas Ramanush por reconhecimento começou ainda na infância, ao perceber que a história de sua etnia era completamente ausente nos livros didáticos, em contraste com os ricos relatos orais de seu pai, um cigano Sinti-Manush, refugiado da Primeira Guerra Mundial. Essa discrepância motivou o compromisso político que, em 2009, o levou a fundar a Embaixada Cigana.
“A ausência de reconhecimento institucional não apaga nossa existência histórica,” explica. “Atuo para reivindicar o pleno pertencimento dos Calon, Rom e Sinti ao Brasil, como cidadãos brasileiros com direitos e deveres constitucionais e identidades próprias.” Para ele, a Embaixada Cigana é um instrumento de afirmação da voz e da contribuição da comunidade romani à sociedade brasileira.
Ancestralidade e Reconhecimento Internacional
A ancestralidade de Nicolas, particularmente sua linhagem Sinte-Valshtike (ciganos Sinti-Manush nascidos na França), é a fonte de sua formação. Ele descreve o saber como algo que “circula pelos gestos, pelas narrativas e pelas memórias que atravessam as gerações”. Essa visão guiou sua trajetória, que mistura a militância prática com uma produção literária notável.
Embora sua formação acadêmica seja em Administração, o reconhecimento de seu trabalho veio de forma inusitada e prestigiosa. Após o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss comunicar que utilizava seu livro Nheengatu-Tupi: vocabulário e gramática tupi-guarani como ferramenta de trabalho, Ramanush foi convidado para um estágio na França. A experiência, no entanto, expôs as contradições do sistema brasileiro. “Busquei apoio em diversas universidades, mas todas recusaram, alegando que eu não possuía diploma na área da Antropologia,” recorda. “O conhecimento que trago, por ser oral e experiencial, foi desconsiderado.”
Seu livro mais recente, "Entre a Fumaça das Fogueiras", é um passo importante nessa jornada. A obra, que reúne contos e mitos ciganos, é descrita como transformadora por transcender os estereótipos: “Em vez de responder à violência simbólica com justificativas, oferece beleza, complexidade e presença. E isso, para mim, é uma forma elevada de resistência.”
Diálogos com Outras Culturas e a Força no Recife
Antes de sua militância cigana, Ramanush mergulhou na etnografia indígena, a convite do indigenista Orlando Villas-Bôas, e em comunidades quilombolas. A conexão entre esses campos, ele explica, está no "enfrentamento comum à exclusão histórica, ao preconceito estrutural e à tentativa sistemática de apagamento cultural".
A arte, para ele, é uma das formas mais elevadas dessa resistência. “Ser cigano é também ser resistência estética,” diz. “A estética cigana não é apenas decorativa, ela carrega códigos, afetos, espiritualidade, memória.”
Sua relação com o Recife é descrita como um "reencontro simbólico", uma cidade que, para ele, dialoga com saberes ciganos. Esse laço foi reforçado pela presença de dois anéis ciganos nas asas do Galo da Madrugada 2025. As peças, criadas por sua esposa Ingrid Ramanush com técnica de latonagem ancestral, homenageiam a cultura romani e a tradição da La Ursa. O gesto de inscrever a memória cigana na festa popular é, para o ativista, uma forma potente de reafirmar a presença de sua etnia.
Um Legado de Parceria e Respeito
Nicolas Ramanush faz questão de ressaltar a importância de sua esposa, Ingrid. “É na doçura firme de sua presença que sacio minha sede quando o caminho se torna áspero,” diz, emocionado. “Nossa parceria é uma dança onde palavra e silêncio se entendem.”
Aos jovens que buscam se aproximar da causa cigana, ele deixa um conselho: “Caminhem com respeito, e não com pressa. Não se encantem apenas com a estética — encantem-se com a ética que nos sustenta.” E conclui com uma mensagem sobre o que, para ele, é a essência de sua luta: "Não é a minha etnia que me define, mas sim meu caráter."
Vamos saber mais da entrevista?
Como o senhor se define enquanto escritor e representante da cultura cigana no Brasil?
Como escritor, compreendo minha missão como um gesto de restituição da memória e da dignidade da etnia romani(cigana) no Brasil. Minha escrita é atravessada por uma escuta atenta das vozes silenciadas pela história oficial — uma história que, por séculos, nos relegou à sombra da invisibilidade ou da caricatura. Escrevo, portanto, para reencantar o olhar sobre a presença cigana em território brasileiro (até porque somos brasileiros portadores de etnia cigana) resgatando narrativas que nos foram negadas e reconstituindo os vínculos entre a palavra, a ancestralidade e a resistência. Enquanto representante da cultura cigana, busco atuar com responsabilidade ética. Não me vejo como um porta-voz da comunidade, mas como alguém que carrega um fragmento de uma coletividade diversa e profundamente marcada pela exclusão. Minha atuação se dá tanto na esfera literária quanto nas práticas educativas, acadêmicas e institucionais, sempre com o propósito de tensionar os discursos hegemônicos e de afirmar a legitimidade dos saberes e modos de vida ciganos.
Quando e como começou seu envolvimento com a Embaixada Cigana e a luta pelos direitos dos povos ciganos?
Meu envolvimento com a causa cigana é anterior à própria instituição da Embaixada Cigana, fundada em 2009. Trata-se de uma militância que se enraíza ainda na infância, quando, nas aulas de história, eu percebia com incômodo profundo a invisibilidade da nossa etnia nos livros didáticos e nos currículos escolares. O silêncio institucional contrastava com os relatos orais do meu pai — um cigano Sinti-Manush, refugiado da Primeira Guerra Mundial — que me contava sobre a presença antiga dos ciganos no Brasil, desde o período colonial, e sobre a riqueza de nossa cultura, constantemente ignorada ou estigmatizada.
Esse contraste entre a memória familiar e a omissão dos registros oficiais gerou em mim um conflito que se converteu, com o tempo, em compromisso político. A ausência de reconhecimento institucional não apaga nossa existência histórica. Somos brasileiros de etnia romani, e é a partir desse lugar que atuo: não como alguém que luta pelos “direitos dos povos ciganos” — uma expressão válida apenas no campo antropológico, mas problemática e imprecisa do ponto de vista jurídico e político —, e sim como alguém que reivindica o pleno pertencimento dos Calon, Rom e Sinti ao Brasil, como cidadãos brasileiros com direitos e deveres constitucionais e identidades próprias.
A Embaixada Cigana nasce, portanto, como resposta a essa omissão histórica e como instrumento de afirmação da nossa presença, da nossa voz e da nossa contribuição à sociedade brasileira.
Qual a importância da sua ancestralidade cigana na sua formação intelectual e espiritual?
Minha ancestralidade cigana é a fonte primeira da minha formação, tanto intelectual quanto espiritual. Ela me ensinou que o saber não se restringe às instituições formais, mas circula pelos gestos, pelas narrativas, pelos silêncios e pelas memórias que atravessam as gerações. Cresci ouvindo histórias que não estavam nos livros, mas que carregavam verdades profundas sobre o mundo, a justiça, a liberdade e o sagrado. Essas narrativas, transmitidas oralmente, especialmente por meu pai, moldaram em mim uma forma de pensar que valoriza o simbólico, o invisível e o intuitivo como caminhos legítimos de conhecimento.
No plano espiritual, a ancestralidade cigana me conecta com uma visão de mundo em que tudo está em movimento — não apenas fisicamente, mas também espiritualmente. Aprendi a respeitar os ciclos, a escutar os sinais da natureza, a reconhecer a presença do divino no cotidiano e a cultivar uma espiritualidade viva, não institucionalizada, mas profundamente ética. Essa espiritualidade, que integra corpo, memória e caminho, é inseparável da minha atuação como educador, escritor e militante. É ela que me dá força para seguir, mesmo diante das adversidades, com os pés firmes na terra e os olhos voltados para o horizonte da dignidade.
O que o clã Sinte-Valshtike representa dentro da cultura cigana? Como é fazer parte dele?
Sinte-Valshtike é a denominação, em nosso dialeto, para o subgrupo de ciganos Sinti nascidos na França, também autodenominados Sinti-Manush. Trata-se, portanto, de uma designação identitária que articula pertencimento territorial, histórico e linguístico dentro do universo mais amplo da etnia romani. Meu pai nasceu na França e, por essa linhagem direta, carrego em mim a herança desse subgrupo. Não se trata apenas de uma origem geográfica, mas de uma memória ancestral que atravessa continentes, guerras e exílios — e que continua viva em nossos ritos, valores e formas de estar no mundo.
Fazer parte do subgrupo Sinte-Valshtike é, para mim, a certeza de que nunca estou só. Quando ministro uma aula, quando escrevo ou tomo a palavra em espaços públicos, não falo apenas por mim: toda uma linhagem fala através de minha boca. Sinto a presença daqueles que vieram antes — os que resistiram, os que caminharam, os que guardaram a língua, os gestos e os saberes — como uma força silenciosa que sustenta cada passo da minha trajetória. É uma pertença que não se mede por documentos, mas por vínculos de sangue, de memória e de espiritualidade. É o que me dá enraizamento mesmo em movimento, e voz mesmo em contextos de silenciamento.
Seus livros exploram desde aspectos sociais até espiritualidade. Qual obra o senhor considera mais transformadora e por quê?
A bem da verdade, não consigo escolher uma obra como a mais transformadora — seria como eleger um filho entre vários. Cada livro carrega um momento da minha caminhada, uma urgência própria, um tom distinto. Alguns nasceram do enfrentamento às injustiças sociais; outros, do desejo de reencontro com o sagrado ou da necessidade de preservar a memória. Todos têm seu valor e sua singularidade.
No entanto, creio que Entre a Fumaça das Fogueiras, o “caçula” entre meus escritos, representa um passo importante rumo a uma transformação mais profunda. Trata-se de uma obra de literatura cigana, na qual reúno contos, lendas e mitos que dialogam com nossa espiritualidade, nossa relação com a natureza, com os sonhos e com o invisível. É um livro que não apenas informa, mas evoca — que convida o leitor a sentir, imaginar e se reconectar com uma visão de mundo que desafia a lógica ocidental e fragmentada.
Essa obra é transformadora porque rompe com os estereótipos, sem precisar explicá-los; ela não reage ao preconceito, ela o transcende. Em vez de responder à violência simbólica com justificativas, oferece beleza, complexidade e presença. E isso, para mim, é uma forma elevada de resistência e de cura coletiva.
Como foi o convite de Claude Lévi-Strauss para ministrar curso na França? Qual foi o impacto dessa experiência na sua trajetória?
Esse episódio marcou-me profundamente — ao mesmo tempo em que me fez sentir reconhecido por uma autoridade internacional, mostrou como o sistema acadêmico brasileiro ainda invisibiliza e deslegitima saberes que não se enquadram nas molduras formais. Guardo com muito carinho as cartas que Lévi-Strauss me enviou: tanto a de elogio ao meu livro quanto a do convite. São para mim como relíquias — não apenas pelo conteúdo, mas pelo gesto simbólico de um mestre que, com toda sua formação, soube reconhecer a profundidade de um saber que vem do chão, da oralidade, da vida.
O convite partiu após o professor Claude Lévi-Strauss — uma das maiores referências da Antropologia no mundo — comunicar-me através de carta que utilizava meu livro Nheengatu-Tupi: vocabulário e gramática tupi-guarani como ferramenta de trabalho no Laboratório de Antropologia Social da França. Saber que uma obra que escrevi como autodidata estava sendo utilizada por um dos pilares do estruturalismo, e ainda elogiada por ele, foi uma honra que carrego com profunda gratidão.
Receber tal reconhecimento foi especialmente marcante porque minha formação acadêmica é em Administração — sou um antropólogo prático, de campo, forjado na escuta, na pesquisa direta, no respeito às culturas e na busca incansável por compreensão. E isso, infelizmente, não é algo que sempre encontra acolhimento no mundo institucional. O convite do mestre Lévi-Strauss incluía a hospedagem, mas não o custeio da passagem. Busquei apoio em diversas universidades e faculdades no Brasil, mas todas recusaram, alegando que eu não possuía diploma na área da Antropologia. O conhecimento que trago, por ser oral, experiencial e não certificado por um "pedaço de papel", foi desconsiderado.
Como os temas da antropologia da sexualidade e da etnografia indígena se conectam com a luta cigana?
De forma direta, não se conectam. Minha atuação na etnografia indígena não surgiu da militância cigana, mas sim de um convite que recebi ainda jovem do saudoso Orlando Villas-Bôas, referência incontornável na causa indigenista no Brasil. Como ele costumava dizer com afeto, passei dezoito anos “auxiliando informalmente os projetos da tribo Villas-Bôas”, período em que tive a oportunidade de mergulhar em saberes ancestrais e modos de vida profundamente respeitosos com a terra, a espiritualidade e a coletividade. Dessa experiência nasceram obras como Nheengatu-Tupi e Casa das Máscaras Sagradas, que preservam e difundem aspectos linguísticos e simbólicos das culturas com as quais convivi.
Posteriormente, aprofundei-me também em comunidades de remanescentes de quilombo, como no Cafundó, onde passei mais quatro anos e produzi o livro Código Negro: Razão Afro-Brasileira. Em ambos os contextos — indígena e afro-brasileiro — compreendi que o maior elo com a causa cigana é o enfrentamento comum à exclusão histórica, ao preconceito estrutural e à tentativa sistemática de apagamento cultural. Indígenas, negros e ciganos foram, cada um a seu modo, alvo de projetos de silenciamento e controle — por vezes pela força, por vezes pela assimilação forçada.
Se há uma conexão entre esses campos, ela está no campo ético e político: no compromisso de escutar os povos que falam com vozes muitas vezes abafadas pela história oficial, e na defesa de um Brasil que reconheça, celebre e respeite sua diversidade. Nesse sentido, embora os saberes não se confundam, eles se entrelaçam na resistência.
O senhor costuma dizer que "ser cigano é também ser resistência estética". Como o senhor vê a relação entre arte e identidade?
Para mim, arte e identidade são inseparáveis — especialmente quando falamos de uma etnia como a nossa, cuja história foi marcada por perseguições, deslocamentos forçados e silenciamentos institucionais. Em contextos assim, a arte não é apenas expressão: é sobrevivência, é linguagem de permanência, é forma de existir sem pedir licença. Quando afirmo que ser cigano é também ser resistência estética, refiro-me ao modo como, mesmo diante da marginalização, conseguimos manter viva uma sensibilidade própria: na música, na oralidade, na dança, na indumentária, nos ritos. Tudo em nós comunica uma visão de mundo.
A estética cigana não é apenas decorativa — ela carrega códigos, afetos, espiritualidade, memória. E justamente por isso foi tantas vezes criminalizada ou desvalorizada: porque desafia os padrões coloniais e ocidentais de beleza, de sobriedade e de racionalidade. Nossa arte é exuberante, intuitiva, simbólica. É uma forma de ocupar o espaço com dignidade, de afirmar presença onde tantos tentaram nos apagar.
Vejo, portanto, a arte como um dos pilares mais profundos da identidade cigana. Ela é a nossa língua não escrita, o nosso grito silencioso, o modo como reencantamos o mundo e nos reconectamos com quem fomos — e com quem ainda seremos.
No desfile do Galo da Madrugada, a figura do Galo usou um anel cigano criado por sua esposa, Ingrid. Qual o significado dessa homenagem e como ela dialoga com a representatividade cigana no maior bloco carnavalesco do mundo?
Na verdade, foram dois anéis ciganos, um em cada lado das asas do Galo da Madrugada 2025 — e cada um deles carrega um profundo valor simbólico. As peças foram criadas por minha esposa, Ingrid Ramanush, utilizando uma técnica tradicional de latonagem em latão, transmitida há gerações em sua família e aprendida por ela diretamente com o bisavô. Esses anéis não são meros adornos; são inscrições de memória, espiritualidade e presença.
Os símbolos que Ingrid gravou nos anéis remetem à figura da La Ursa, uma manifestação cultural que tem raízes no grupo cigano Sinti e que influenciou diretamente o surgimento dos folguedos populares, especialmente no Nordeste, até chegar aos atuais blocos de carnaval inspirados nessa tradição. Entre os símbolos, destaca-se a pata do urso — que para nós, do grupo Sinti-Manush, representa o maior emblema de proteção espiritual. A pata do urso é nosso escudo invisível, nossa força ancestral em tempos de vulnerabilidade.
A presença desses anéis no Galo da Madrugada — o maior bloco carnavalesco do mundo — é uma homenagem potente e silenciosa à cultura cigana, frequentemente esquecida nas narrativas sobre as origens do carnaval brasileiro. É também um gesto de reencantamento: inscrever nossa memória coletiva na festa popular mais importante do país, com a delicadeza do metal moldado por mãos herdeiras de um saber ancestral. É arte, é política, é espiritualidade.
Como a espiritualidade cigana influencia sua escrita e sua atuação pública?
A influência é total. A espiritualidade cigana não é algo que se separa da vida cotidiana, nem se restringe a rituais ou crenças formais — ela é uma forma de existir no mundo. Em minha escrita, ela se manifesta na escuta profunda do invisível, no respeito ao mistério, na confiança nos sinais que a vida oferece. Escrevo com a certeza de que não estou só: meus ancestrais caminham comigo, falam através de mim, conduzem meus gestos e minha voz.
Na atuação pública, essa espiritualidade se traduz em ética, em responsabilidade com a palavra, em presença verdadeira. Não falo por vaidade nem por ambição, mas por missão. A palavra, para nós, é sagrada — e usá-la em espaços institucionais, acadêmicos ou populares exige preparo interior, humildade e coragem. É por isso que, antes de qualquer fala, silêncio-me por dentro e peço permissão aos que vieram antes.
Nossa espiritualidade é feita de chão, de vento, de fogo e de presságios. Ela não se mede em dogmas, mas em vivência. E é ela que me mantém firme mesmo quando tudo ao redor tenta deslegitimar ou silenciar a presença cigana. É por ela que sigo escrevendo, ensinando e lutando — com o coração alinhado ao caminho que me foi confiado.
O senhor tem artigos publicados em diversos veículos. A invisibilidade social dos ciganos ainda é uma realidade? O que pode transformá-la?
Sim, a invisibilidade social dos ciganos ainda é uma realidade no Brasil — e ela não é acidental, é histórica e estrutural. Somos frequentemente apagados das estatísticas, dos livros, das políticas públicas e das narrativas nacionais. O que pode transformá-la é o reconhecimento pleno da nossa brasilidade, a escuta das nossas vozes, a inclusão da nossa história nos currículos escolares e o fim do olhar folclorizante ou criminalizador. Visibilidade, para nós, não é vitrine: é direito, é respeito, é pertencimento.
Sim, a invisibilidade social dos ciganos ainda é uma realidade no Brasil — e ela não é acidental, é histórica e estrutural. Somos frequentemente apagados das estatísticas, dos livros, das políticas públicas e das narrativas nacionais. O que pode transformá-la é o reconhecimento pleno da nossa brasilidade, a escuta das nossas vozes, a inclusão da nossa história nos currículos escolares e o fim do olhar folclorizante ou criminalizador. Visibilidade, para nós, não é vitrine: é direito, é respeito, é pertencimento.
Como o senhor vê a presença cigana nas cidades brasileiras, especialmente no Recife?
A presença cigana nas cidades brasileiras, incluindo Recife, é viva, resistente e historicamente enraizada — mas segue sendo invisibilizada ou mal compreendida. Em Recife, assim como em grande parte do Nordeste, Sudeste e Norte, a presença mais visível é a do grupo Calon, que carrega uma trajetória marcada por deslocamentos forçados e exclusão.
A presença cigana nas cidades brasileiras, incluindo Recife, é viva, resistente e historicamente enraizada — mas segue sendo invisibilizada ou mal compreendida. Em Recife, assim como em grande parte do Nordeste, Sudeste e Norte, a presença mais visível é a do grupo Calon, que carrega uma trajetória marcada por deslocamentos forçados e exclusão.
Uma resposta mais profunda e assertiva sobre essa presença pode ser encontrada no longa-metragem documentário Terra de Ciganos, que contou com minha consultoria cultural e a de minha esposa, Ingrid Ramanush. Além disso, temos três composições de nossa autoria na trilha sonora do filme e participamos interpretando a nós mesmos. O documentário retrata com sensibilidade e profundidade a presença cigana Calon em várias regiões do Brasil, dando voz a quem, por séculos, teve sua história contada por outros.
O que representa para o senhor estar no Recife, dialogando com diferentes expressões culturais?
Estar hoje em Recife é, para mim, mais do que uma presença geográfica — é um reencontro simbólico com uma cidade profundamente marcada pela diversidade, pela resistência e pelo cruzamento de matrizes culturais. Recife é terra de maracatus, de La Ursa, de terreiros, de cantadores, de reinados e de tradições que, muitas vezes, dialogam com os saberes ciganos, ainda que isso raramente seja plenamente reconhecido.
Estar hoje em Recife é, para mim, mais do que uma presença geográfica — é um reencontro simbólico com uma cidade profundamente marcada pela diversidade, pela resistência e pelo cruzamento de matrizes culturais. Recife é terra de maracatus, de La Ursa, de terreiros, de cantadores, de reinados e de tradições que, muitas vezes, dialogam com os saberes ciganos, ainda que isso raramente seja plenamente reconhecido.
Poder dialogar com diferentes expressões culturais aqui é uma forma de romper silêncios, desfazer fronteiras simbólicas e afirmar que a presença cigana também integra esse tecido múltiplo e vibrante da cultura brasileira. É um momento de escuta, de troca e de reafirmação identitária. Recife tem me acolhido não como estrangeiro, mas como parte de uma memória comum — e isso tem para mim um valor imenso.
Sobretudo, Recife é um lugar de gente profundamente humana, onde eu e Ingrid tivemos a alegria de fazer amigos queridos — como os irmãos da Comunidade Ramatis: irmão Ramos e sua esposa Bernadete, Adriano, Dhyanna, Soraya, Rossana, Leopoldo Nóbrega, Profª. Juliani, entre outros. Tanto isso é verdadeiro que, ontem, dia 17 de julho, durante a palestra que realizei na Fenearte, afirmei publicamente que um dos meus sonhos é, um dia, receber o título de cidadão recifense — como reconhecimento desse amor e carinho compartilhado com tanta generosidade por este lugar e seu povo.
Ingrid é sua companheira de vida e criação. Como essa parceria influencia suas ideias e projetos?
Ingrid não é apenas minha companheira — é a nascente onde bebo quando o sol escaldante do preconceito e da discriminação ameaça secar minhas forças. E não falo apenas do preconceito vindo de fora, mas também daquele que, por vezes, dói ainda mais: o que vem de dentro, da própria comunidade, quando não se reconhece a liberdade de ser quem se é.
É no olhar de Ingrid que reencontro meu rumo. É na doçura firme de sua presença que sacio minha sede quando o caminho se torna áspero. Sua intuição afiada, sua arte silenciosa, seu saber ancestral moldado pelas mãos do bisavô — tudo nela me ensina, me inspira e me fortalece.
Depois de beber da fonte do seu amor, sou capaz de seguir. E sigo. Com ela, não apenas divido a vida — multiplico sentido. Nossa parceria é uma dança onde palavra e silêncio se entendem, onde criação e cuidado se entrelaçam. Ingrid é parte essencial da minha missão existencial, e sem ela, talvez eu soubesse o caminho, mas não teria forças para trilhá-lo até o fim.
Que mensagem o senhor gostaria de deixar para os jovens escritores e pensadores que se aproximam da causa cigana hoje?
Aos jovens que se aproximam da causa cigana com o coração aberto e a mente desperta, eu digo: caminhem com respeito, e não com pressa. Não tenham medo do silêncio, pois é nele que mora o tempo da escuta. A cultura cigana não se revela por completo aos olhos apressados — ela se oferece em fragmentos, como brasas antigas que ainda guardam calor.
Escrever sobre a causa cigana é carregar nas mãos uma memória ferida, mas também luminosa. É resistir ao desejo de falar sobre e aprender a falar com. É saber que, muitas vezes, nossas palavras vão apenas roçar a borda de uma sabedoria que não cabe em livros, diplomas ou teorias. Mas se forem ditas com verdade, essas palavras terão raiz.
Não se encantem apenas com a estética — encantem-se com a ética que nos sustenta. E, sobretudo, lembrem-se: cigano não é personagem, é pessoa. É cidadão. É brasileiro. É presença viva. A literatura, quando nasce do respeito, é um tipo de fogueira: aquece, ilumina, reúne. Que os seus escritos não sejam fagulhas de vaidade, mas chamas de consciência.
Não é a minha etnia que me define, mas sim meu caráter!
Aos jovens que se aproximam da causa cigana com o coração aberto e a mente desperta, eu digo: caminhem com respeito, e não com pressa. Não tenham medo do silêncio, pois é nele que mora o tempo da escuta. A cultura cigana não se revela por completo aos olhos apressados — ela se oferece em fragmentos, como brasas antigas que ainda guardam calor.
Escrever sobre a causa cigana é carregar nas mãos uma memória ferida, mas também luminosa. É resistir ao desejo de falar sobre e aprender a falar com. É saber que, muitas vezes, nossas palavras vão apenas roçar a borda de uma sabedoria que não cabe em livros, diplomas ou teorias. Mas se forem ditas com verdade, essas palavras terão raiz.
Não se encantem apenas com a estética — encantem-se com a ética que nos sustenta. E, sobretudo, lembrem-se: cigano não é personagem, é pessoa. É cidadão. É brasileiro. É presença viva. A literatura, quando nasce do respeito, é um tipo de fogueira: aquece, ilumina, reúne. Que os seus escritos não sejam fagulhas de vaidade, mas chamas de consciência.
Não é a minha etnia que me define, mas sim meu caráter!
Ao lado da esposa Ingrid Ramanush - Imagem: Instagram Nicolas Ramanush |