domingo, 7 de outubro de 2018

Artigo: Sem Sentido(s)

O nosso blog tem como premissa dar voz às pessoas e informá-las com matérias de interesse público, e de interesse do público também. Hoje, dia das eleições do 1º Turno, onde vemos uma polarização, a professora universitária Thyana Galvão escreve um artigo para expressar suas preocupações com essa queda de braço que tomou conta da gente. Boa leitura e reflexão pra vocês:


Sem Sentido(s)

Adoro gente! Isso mesmo: gente de carne e osso, gente de verdade... gosto de trocar ideias com as pessoas... Ouvi-las... Saber suas opiniões sobre educação, saúde, habitação, política, religião... Falando de uma maneira bem ampla: conversar acerca da vida. Posso dizer que esta é uma peculiaridade de minha personalidade.

Trabalho com pessoas diariamente: prestando ‘o bom funcionalismo público brasileiro’. Sim, sou funcionária pública federal. Docente efetiva na segunda melhor universidade pública do nordeste, segundo o ranqueamento das mil melhores instituições de ensino superior do mundo, elaborado e divulgado pelo CWUR (Center for World University Rankings) em maio deste ano.

Essa minha “peculiaridade” me levou a participar de um grupo de caronas no whatsapp (aplicativo de mensagens instantâneas e chamadas de voz para smartphones utilizado mundialmente), administrado por discentes da universidade que trabalho e direcionado, inicialmente, para o uso destes. Fazer parte desse grupo me possibilitou realizar o trajeto casa-trabalho-casa acompanhada, além de conhecer novas pessoas, diariamente. Durante o percurso, conversamos sobre os mais variados assuntos. Contudo, o atual cenário político brasileiro tem sido o tema mais frequente do itinerário.

_“Estamos vivendo um momento de profunda crise de valores morais e éticos”_, afirmou um caroneiro na tentativa de justificar sua escolha política nas Eleições Presidenciais no Brasil em 2018.

Tal afirmação me permitiu viajar mais que o trajeto (planejado) me possibilitava. Pensamentos adormecidos, oriundos de muitas leituras e reflexões, vieram à tona: Russeau (1754), Senett (1976), Costa (1985), Saramago (1995), Bauman (2000), entre outros tantos que teceram considerações a esse respeito.

Ao volante, iniciei meu discurso, lançando um questionamento aos três caroneiros que me acompanhavam naquela manhã:
*Há quanto tempo estamos vivendo este momento?*

Em _*Discurso sobre a Origem e os fundamentos da Desigualdade entre os homens*_, obra de 1754, Russeau afirma que o homem é naturalmente bom e que sua deterioração adveio com a sociedade que, em sua pretensa organização, não só permitiu, mas impôs a servidão, a escravidão, a tirania e inúmeras leis que favorecem uma classe dominante em detrimento da grande maioria, instaurando a desigualdade em todos os segmentos da sociedade humana. Na sociedade vazia e hipócrita do século XVIII, exposta por Russeau, os valores humanos foram deturpados e o poder é conquistado através da propriedade privada. Entretanto, o autor critica veemente esse sistema de dominação entre os homens, que deixa de lado seus princípios, a justiça e os valores éticos.

Em _*O declínio do homem público: as tiranias da intimidade*_, o sociólogo Richard Sennett realiza um apanhado das formas de sociabilidade, comunicação, representação, atuação e relação entre as pessoas das grandes cidades, desde o século XVIII até os dias atuais do autor, ou seja, 1974. Ao descrever a sociedade como convenção de pessoas preocupadas com os próprios interesses, afirmando que elas apenas buscam refletir sobre a própria vida psíquica, com o objetivo de desvelar os verdadeiros sentimentos, esquecendo-se do fato, ou mesmo desconhecendo, de que eles são produzidos socialmente, além de transformar a convivência com amigos íntimos e familiares em um fim em si mesmo, Sennett assume que essa situação está relacionada à valorização da esfera privada em detrimento da pública.

Em _*Narcisismo em tempos sombrios*_, obra de 1985, Jurandir Freire Costa assume que a mentalidade da sociedade é produto da cultura da violência, apontando que a impotência e a impossibilidade de mudança do quadro social instituído, ativa mecanismos narcisistas de proteção do EU. Como resultado, podemos ser induzidos ou conduzidos, por exemplo, a modelos de relacionamentos pautados na superficialidade e brevidade. Nesse sentido, Bauman (1997) os define como líquidos: o sujeito dá a impressão de que está se relacionando, mas, na verdade, sequer está levando em consideração o outro.

A afirmação do caroneiro me transportou para o clássico _*Ensaio sobre a cegueira*_, de José Saramago, obra de 1995 que deu origem ao filme homônimo de Fernando Meirelles, lançado há exatos dez anos no Brasil. Aliás, é preciso ser dito que só bebi da fonte original, após assistir ao filme, pouco após seu lançamento, em fins de 2008.

_“Vai haver luta, guerra, Os cegos estão em guerra, sempre estiveram em guerra”_ (José Saramago).

_"É necessário sair da ilha, para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós”_ (José Saramago). 

Na obra original (muito bem reproduzida no filme de Meirelles), toda humanidade do mundo, criado por Saramago, é condenada à viver sem a visão. A cegueira é apresentada, na obra, como uma doença não diagnosticável chamada de “cegueira branca”, a qual se espalha pelo mundo com imensa velocidade, abalando as estruturas sociais e causando um grande colapso na vida das pessoas que necessitam REaprender a (com)VIVER num mundo cujos avanços conquistados até aquele momento de nada adiantavam.

A busca pela sobrevivência (mesmo que à custa dos outros), o retorno ao estilo de vida primitivo (onde as pessoas não têm identidade própria), as guerras entre grupos e indivíduos são marcantes e fazem parte do cenário proposto por Saramago.

_*Um dia normal na cidade. Os carros parados numa esquina esperam o sinal mudar. A luz verde acende, mas um dos carros não se move. Em meio às buzinas enfurecidas e à gente que bate nos vidros, percebe-se o movimento da boca do motorista, formando uma palavra, uma, não, duas: “Estou cego”.*_

A obra de Saramago tem início assim. E há inúmeras hipóteses para a cegueira. Entretanto, sociologicamente poderíamos explicá-la como causa de um conceito denominado alienação, ou seja, quando os indivíduos não conseguem pensar de maneira crítica ou mal conseguem pensar por conta própria, mas através dos demais. Além disso, a cegueira pode funcionar como uma forma de enxergar a natureza humana muito além das aparências civilizadas.

Antes da epidemia total da cegueira, os primeiros a se cegarem são isolados numa espécie de hospício, onde são tratados como animais e, rapidamente, assim se tornam. O isolamento era a atitude mais fácil a ser tomada.

Parece-me que, em situações extremas, escassas, os homens são tomados por atitudes primitivas e animalescas. A escassez leva à disputa por espaço, comida, privilégios e poder. 
Mais da metade da narrativa trata de descrever a vida que se desenrola no cotidiano desse local, em que os primeiros grupos de cegos vão sendo compulsoriamente internados. Personagens sem nome. Entretanto, nessa cegueira generalizada, apenas uma mulher mantém a visão, e, por ver, sofre duplamente. Trata-se da esposa de um médico, única personagem que consegue enxergar, vivencia a cegueira que as pessoas se encontram (não somente a física), a falta de visão que as pessoas têm em relação à realidade, à falta de sensibilidade, de enxergar o problema do outro como um que poderia ser seu, essa incapacidade constante que o homem tem de colocar-se no lugar do outro. A incapacidade de amar.

_“Só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são”_ (José Saramago).

E, de fato, o que se vê é uma redução da humanidade às necessidades e afetos mais básicos. Em meio a mais profunda miséria e degradação, com a falta de condições de higiene e saúde atingindo limites absurdos, há ainda lugar para que um grupo de cegos celerados queira tomar para si as rédeas do poder. Você deve se perguntar: mas como assim? Isto ocorreu porque no início, a comida era dividida de acordo com as necessidades de cada um. Mas não tardou para que alguns indivíduos tentassem obter uma fatia maior de comida, chegando ao extremo de um determinado grupo “privatizar a comida” em troca de bens materiais e, posteriormente, em troca de mulheres.
Apenas coincidência com a sociedade exposta por Rousseau? Saramago utilizou-se da comida para expor que em situações extremas, o coletivo é abandonado em detrimento do individual. A propriedade da comida gerou desigualdades e conflitos, pois esse grupo ganhou à custa de outros.

Ao acirrarem fogo no local, seus ocupantes têm a possibilidade de acesso ao mundo externo, graças ao incêndio provocado, e todos se dão conta do estado de calamidade absoluta a qual a humanidade estava subordinada. Todos estavam cegos, as pessoas iam vivendo pelas ruas, sem rumo, sem casa, em meio ao lixo.

Como já mencionei a personagem principal tem a particularidade de ser a única que não chega a cegar. Assim, seus olhos tornam-se os olhos dos cegos, ao mesmo tempo em que a sua determinação e capacidade de organização são colocadas a serviço dos outros. A dada altura da obra, a personagem assume que “organizar-se já é, de certa maneira, começar a ter olhos”, ou seja, a organização passa a ser sentida como uma necessidade primordial para a subsistência do grupo que a mulher do médico analisa.

Infelizmente, a sociedade nem sempre caminha para o progresso. Se pautarmos o futuro a partir de ações danosas para o coletivo, a humanidade entrará em colapso. O fato de ver os problemas sociais, mas não fazer nada, nem menos pensar com uma maior profundidade neles leva à sociedade para um caos futuro, como o que aconteceu no ensaio de Saramago.
Ao nos mostrar todo o caos de uma sociedade cega, a leitura, e, principalmente, a reflexão acerca dessa obra, se faz necessária em tempos, em que as pessoas têm ficado cegas para problemas que devem ser vistos. A obra de Saramago não se situa em nenhum tempo específico. É um tempo que pode ser ontem, hoje ou amanhã.

Penso que o que se passa no livro pode não estar muito longe e toda a racionalidade humana pode dar lugar a um comportamento que hoje se chama selvagem, mas que em tal situação seria a única forma de sobreviver.

A personagem principal tenta, nos últimos parágrafos do texto, explicar a cegueira: _*“Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que vendo, não veem”.*_ Muita filosofia? Não! *Somos parte, hoje, de uma sociedade que não enxerga os problemas sociais com a devida profundidade e nem sequer pensa sobre eles.* A alienação ocorre porque a sociedade não enxerga o que precisa ser visto e, na obra, a cegueira branca foi uma consequência disto. Como se a sociedade que já não via, ficasse impedida de ver.

_”A pior cegueira é a dos que não sabem que estão cegos”._ (Clarice Lispector)

*“Estamos vivendo um momento de profunda crise de valores morais e éticos”.*

Não seria a cegueira? Todos cegos no Brasil. Não há mais o olhar para o coletivo, mas para o meu pedaço, a fatia que me pertence. #elesim #elenão #13 #17 #12 #foraPT #Lulalivre #mito são hashtags que nos enfraquecem enquanto sociedade. Quantos candidatos temos? Porque são tantos? Escolhem nos segregar! E nós permitimos essa escolha diariamente. Assistimos, virtualmente ou presencialmente, brigas em família, discussões entre amigos, confusões entre desconhecidos... Tudo por conta de divergências políticas. Que tristeza! Nós, cegos, cada vez piores...

*O que pensar? O que concluir disso tudo? Para onde vamos?*

_Já nos levaram a visão... E, para alguns, falta pouco para não terem mais a capacidade de enxergar com os outros sentidos que restam._


*Thyana Galvão, 43 anos, é docente do quadro efetivo da Universidade Federal de Pernambuco.